Mudanças na lei facilitam acesso a laqueadura e vasectomia, que agora dispensa autorização do cônjuge para a realização dos procedimentos. Leia na coluna de Mariana Varella.
Entrou em vigor, na última quinta-feira (2/3), a lei que institui mudanças nos requisitos para a realização dos procedimentos de esterilização. A lei, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, visa facilitar o acesso ao planejamento familiar.
Entre as modificações, está a dispensa do consentimento do cônjuge para a realização da laqueadura, no caso das mulheres, e da vasectomia, no dos homens. Além da isenção do aval do parceiro ou parceira, a nova legislação diminui de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização dos procedimentos.
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A mudança representa um avanço no acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de homens e mulheres, definidos pelo Ministério da Saúde como “os direitos de as pessoas decidirem, de forma livre e responsável, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas”. Além disso, os direitos sexuais garantem o direito de ter relações sexuais independentemente da reprodução.
Esses direitos fazem parte dos direitos humanos, e foram adotados por diversos países durante uma conferência das Nações Unidas em 1994. Apesar disso, muitos países, incluindo o Brasil, onde o acesso a contraceptivos e ao planejamento familiar ainda é precário, falham ao garanti-los.
É razoável dizer que a esterilização não deve ser a única alternativa de planejamento familiar. É preciso garantir acesso pleno aos métodos contraceptivos, por exemplo. Em um mundo ideal, todas as pessoas teriam acesso a informações e a todos os métodos anticoncepcionais, para, assim, fazerem suas escolhas. Quem não desejasse ter filhos poderia, se assim desejasse, optar pela esterilização, desde que compreendesse suas vantagens e desvantagens.
O problema no Brasil é que, além das dificuldades de acesso à saúde, ainda paira uma visão paternalista e conservadora acerca da sexualidade. Em primeiro lugar, a contracepção segue sendo vista como responsabilidade da mulher. É ela que deve escolher pílula ou usar outro método anticoncepcional, e ela que arca com uma gestação indesejada ou com um aborto inseguro, caso as coisas não saiam como o planejado.
Mesmo sem acesso pleno aos direitos sexuais e reprodutivos e tendo de assumir, muitas vezes sozinha, a responsabilidade de uma vida sexual compartilhada, a mulher ainda precisava da autorização do parceiro para realizar uma laqueadura. E tinha de ter mais de 25 anos ou dois filhos nascidos vivos. E não podia realizar o procedimento durante o parto. E precisava esperar anos na fila do SUS.
As regras eram tão rígidas, que acabavam sendo impeditivas. Claro que é preciso cuidado ao regulamentar um procedimento cujos resultados são definitivos. Mas não fazemos nada parecido com tatuagens ou cirurgias plásticas que modificam totalmente a feição, para dar um exemplo. Para esses procedimentos, a lei entende que adultos têm direito de decidir sobre o próprio corpo.
Difícil não enxergar que há questões morais permeando as decisões que praticamente inviabilizam os direitos sexuais e reprodutivos.
Mudanças na lei de acesso
Embora o ideal seja que os casais possam planejar em conjunto a vida familiar, a autonomia sobre o próprio corpo deve prevalecer sempre. No entanto, a antiga lei, em vigor desde 1996, não entendia assim e exigia a autorização do cônjuge para a realização da laqueadura e da vasectomia.
Além disso, não permitia que a laqueadura, um procedimento que muitas vezes exige internação hospitalar (ver abaixo), fosse feita durante o parto, mesmo que isso evite mobilizar profissionais de saúde e hospital mais de uma vez.
Na prática, muitas mulheres que têm acesso a serviços de saúde particulares conseguem fazer a laqueadura durante o parto, em especial porque o número de cesarianas nesses serviços é muito mais alto do que na rede pública.
A idade mínima exigida também mudou, de 25 para 21 anos. Em um país com altas taxas de gravidez na adolescência e em que o aborto legal é restrito, não faz sentido exigir uma idade tão alta, em que muitas mulheres já têm vários filhos.
Na prática, a lei que entrou em vigor esta semana traz as seguintes alterações:
- Homens e mulheres com mais de 21 anos ou pelo menos dois filhos vivos podem realizar o procedimento, desde que se observe o prazo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico.
- Nesse período, a pessoa poderá ter acesso a aconselhamento por equipe multidisciplinar para desencorajar a esterilização precoce, mulheres podem realizar o procedimento durante o parto, desde que se espere 60 dias entre a manifestação da vontade e o parto.
Laqueadura
A cirurgia de laqueadura é relativamente simples e dura cerca de 40 minutos. Pode ser realizada por laparoscopia, menos invasiva, ou pela abertura da cavidade abdominal, método mais utilizado no SUS.
Na cirurgia, as tubas uterinas, que conectam os ovários ao útero e onde ocorre a fertilização, são cortadas e amarradas, impedindo, assim, a descida do óvulo e a subida dos espermatozoides.
A cirurgia é segura, embora exista um pequeno risco de falha (estima-se que 5 em 1000 mulheres ficarão grávidas após o procedimento).
A cirurgia de laqueadura dificilmente pode ser revertida, portanto a mulher deve estar bem informada e segura acerca da sua escolha.
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Vasectomia
A vasectomia é uma cirurgia rápida e simples, que não exige internação hospitalar e é realizada com anestesia local.
O procedimento interrompe a circulação dos espermatozoides produzidos pelos testículos para a vesícula seminal, de onde seguiriam para a uretra.
Requer uma pequena infiltração local com anestésico e uma incisão de 1 cm de cada lado do saco escrotal. Depois, o médico isola digitalmente os canais deferentes que levam os espermatozoides do epidídimo (ducto que coleta e armazena os espermatozoides produzidos pelo testículo) para a uretra e anestesia novamente. Em seguida, corta-se os deferentes, interpõe-se tecido conjuntivo entre os dois pontos para evitar a recanalização e fecha-se a incisão. O paciente é liberado em seguida e pode retomar suas atividades diárias.
Apesar disso, muitos homens têm medo de que a vasectomia leve à impotência, temor absolutamente infundado. Outros ainda acham que sua masculinidade pode ser abalada por eles não serem mais férteis, o que também não tem cabimento.
A relação entre virilidade e esterilidade não faz sentido do ponto de vista biológico, mas durante muito tempo essa associação foi tida como verdadeira. No imaginário de muitos homens, aqueles que não podem mais gerar filhos deixam de ser viris. “Na verdade, a maioria dos homens não pensa que vai ficar impotente. Eles são tomados por um sentimento tênue e fluido de medo da diminuição da própria masculinidade, uma vez que se tornaram estéreis. Uma coisa nada tem a ver com a outra”, salientou o o dr. Sami Arap, professor de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e médico do Hospital das Clínicas (HC) e do Hospital Sírio-Libanês, ambos em São Paulo, em entrevista a este Portal.
Direitos e escolhas
Não há dúvidas de que se um casal decidir não ter mais filhos e optar pela esterilização, o procedimento mais simples é a vasectomia, visto que a laqueadura é uma cirurgia mais complexa, com mais riscos e cujo período de recuperação é mais longo.
Como o acesso ao procedimento pelo SUS pode demorar meses ou anos, dependendo da região do país, a permissão para realizar a cirurgia durante o parto é muito bem-vinda por mulheres que já decidiram que não desejam mais filhos.
Obviamente, o parto e até a gestação não são o melhor momento para decidir acerca de novos filhos. São poucas as mulheres que pensam em engravidar novamente ainda durante a gestação ou no pós-parto, períodos que impõem mudanças físicas e emocionais intensas. Entretanto, é perfeitamente possível que uma mulher já tenha refletido a respeito do assunto e planejado sua família antes da gravidez.
Poder realizar o procedimento durante o parto facilita a vida de quem precisou realizar uma cesariana, por exemplo, pois evita que a mulher tenha de se submeter a novo procedimento cirúrgico depois, mobilizando leito e profissionais de saúde desnecessariamente.
Quem fez parto normal também pode aproveitar a internação hospitalar para realizar a cirurgia, se esse for seu desejo.
O importante é que todas as pessoas tenham acesso a informação sobre todos os métodos contraceptivos e de esterilização disponíveis para fazerem suas escolhas pessoais, independentemente de estarem ou não em um relacionamento afetivo.
Nessas consultas de aconselhamento devem ser colocados todos os prós e contras de cada método, explicando inclusive quais são ou não reversíveis.
O que não podemos é aceitar uma lei paternalista, que pressupõe que pessoas adultas não têm condições de tomarem decisões acerca da própria vida, só porque essas escolhas são pouco aceitas socialmente.