Mulheres presas sofrem com a perda do convívio com os filhos e em geral são abandonadas pela família, como Maria da Anunciação
Maria da Anunciação tem seis filhos e 23 irmãos. Não faz ideia de quantos sobrinhos vieram ao mundo, porque a família rompeu com ela ao vir presa.
Os pais desembarcaram do trem em São Paulo, na década de 1950, com seis crianças pequenas. Outras oito nasceriam na periferia da zona leste, nos anos que se seguiram.
— Se minha mãe não tivesse falecido no último parto, talvez fossem mais.
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Viúvo, seu Raimundo, o pai, casou no civil e no religioso com uma moça com quem teve mais cinco meninas e cinco meninos, perfazendo o total de 24 filhos criados sob a autoridade do patriarca.
Homem trabalhador, trouxe para a cidade grande os princípios, os valores morais e os preconceitos do povoado em que vivia, no sertão da Paraíba. Ao atingir a idade de trabalhar, os mais velhos entregavam o salário em casa para ajudar nas despesas, compromisso que só terminava quando casavam.
Anunciação cresceu ouvindo o pai dizer que o sobrenome era o bem mais precioso de uma família. O filho que o levasse para dentro de uma delegacia de polícia deixava de ter pai.
Quando começou a namorar o homem com quem teria os seis filhos, seu Raimundo se opôs com firmeza: não respeitava rapazes que frequentavam bares. Hoje, ela lamenta a morte do pai naquela época:
— Se ele não tivesse morrido, eu não teria casado com aquele traste.
A inconstância do marido no trabalho, obrigou-a a desdobrar-se como diarista em casas de família, do outro lado da cidade, tarefa que incluía madrugar no ponto de ônibus e chegar de volta às oito da noite, para enfrentar a cozinha e demais afazeres que o folgado deixava por conta dela.
Perguntei dos filhos e dos irmãos. A única carta fora enviada pelo irmão mais velho. ‘Nunca mais nos procure. Para nós, você está morta’.
Num domingo, na saída da missa com uma vizinha mais velha, Anunciação se queixou de que o marido estava desempregado havia seis meses, situação que a forçava a passar pela humilhação de pedir dinheiro aos irmãos. A senhora colocou a mão em seu ombro:
— Minha filha, só você não sabe que ele fuma crack.
No mesmo dia, colocou o traste para fora de casa:
— Se era para sustentar vagabundo, melhor ficar sozinha com meus filhos.
Nos meses seguintes, entretanto, a realidade se impôs. O que ganhava, somado à contribuição dos irmãos mal dava para pagar o supermercado e o aluguel. As contas da casa se acumulavam, não era raro comerem arroz com ovo, no almoço e jantar. No dia em que cortaram a luz, ela se revoltou:
— O senhor não sabe o que é chegar do trabalho e encontrar as crianças no escuro, os pequenos chorando de medo.
Uma semana mais tarde, procurou a dona de uma biqueira da vizinhança. Acabaram-se os problemas financeiros:
— Comprei tênis e roupas novas para todos, material escolar de primeira, televisão de tela plana, quatro videogames para eles não brigarem. Na geladeira tinha iogurte, Toddynho, frutas, do bom e do melhor. Ganhava R$1.800 por semana, e ainda sobrava tempo para cuidar deles.
A polícia a surpreendeu quando entregava 120 gramas de maconha e 15 papelotes de cocaína para o dono de uma lanchonete, que fizera a encomenda por telefone. Enquadrada no artigo 33 do Código Penal, foi condenada a quatro anos e oito meses.
Cada filho foi para a casa de um dos tios que romperam relações com a irmã “ovelha negra”, a única a conspurcar o nome honrado deixado pelo pai.
Anunciação veio para consulta com aparência doentia, seis meses depois de chegar na penitenciária. Pedia pelo amor de Deus para ajudá-la a ficar livre da cocaína, droga que experimentou para aplacar as saudades dos filhos, por sugestão de outra presa:
— Chorar o dia inteiro não é vida, mulher. Cheira uma carreira que o sofrimento vai pro espaço.
Há 30 anos, vivo a frustração de receber pedidos como esse, sem ter como ajudar, além de dar conselhos gerais de utilidade para lá de duvidosa.
Passados dois anos, Anunciação retornou na semana passada. Só me lembrei dela, quando falou dos 23 irmãos. Era outra pessoa. Tinha abandonado a cocaína e conseguido emprego numa firma que encapa botões, numa das oficinas da penitenciária. Estava de batom, com o cabelo bem cortado, curto, e com as unhas pintadas.
Perguntei dos filhos e dos irmãos. A única carta fora enviada pelo irmão mais velho. “Nunca mais nos procure. Para nós, você está morta”.
Perguntei se tinha aprendido a conviver com a solidão. Respondeu com um sorriso que não consegui decifrar: “Estou apaixonada por uma companheira”.