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Aborto em tempos de zika

Publicado em 06/02/2017
Revisado em 11/08/2020

Mesmo em tempos de zika, mulheres dificilmente contam com um médico que lhes esclareça sobre a doença, sobre os riscos do filho nascer com o perímetro da cabeça menor. Leia mais sobre aborto em tempos de Zika. 

 

Talvez você já tenha notado mudanças no comportamento de mulheres grávidas devido ao crescente número de pessoas infectadas pelo Zika virus. Algumas passaram a incluir, no seu dia a dia, medidas como usar blusas de manga comprida, passar repelente a cada duas horas e colocar inseticida elétrico em todas as tomadas da casa.

Os cuidados podem ser observados em centros urbanos, mas é uma realidade bem distante da vivida pelas principais afetadas pela epidemia: as mulheres nordestinas pobres. Sob condições sanitárias precárias e acostumadas com a presença indesejável do mosquito transmissor da doença, precisam se virar como podem, já que o acesso à informação é deficiente e não são todas unidades de saúde que fornecem repelentes. A maioria dessas mulheres sequer ouviu falar em métodos contraceptivos de longa duração.

Mesmo em tempos de zika, dificilmente elas contam com um médico que lhes esclareça sobre a doença, sobre os riscos do filho nascer com o perímetro da cabeça menor ou sobre as chances reais de tratamento se a criança nascer com algum distúrbio neurológico (convulsões e paralisias, por exemplo). Para elas, essas questões acabam sendo aprendidas na prática.

No Supremo Tribunal Federal (STF) tramita, desde o segundo semestre de 2016, uma ação que pode dar voz, espaço e, o mais importante, direitos a essa população.

Protocolada pela Anadep (Associação Nacional dos Defensores Públicos) e com apoio da Anis (Instituto de Bioética), as demandas estão divididas em eixos. Para as mulheres que tiveram filhos com microcefalia, pede-se que tenham acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), que nada mais é do que uma renda mensal no valor de um salário mínimo com o intuito de ajudá-las nas despesas com o filho. A ação pede que o serviço seja efetuado por tempo indeterminado – atualmente, ele é temporário e dura até a criança completar 3 anos de vida.

Outra demanda é o acesso a procedimentos para estimulação precoce das crianças com microcefalia, com avaliação visual, motora, cognitiva, auditiva e da linguagem, em centros especializados situados em distância de até 50 km da residência da família. Lembre-se: quanto mais a criança com microcefalia for estimulada, mais qualidade de vida ela terá.

É muito difícil conseguir coletar o sangue no tempo ideal porque, muitas vezes, a gestante nem imagina que tem o vírus Dessa maneira, a mulher só vai associar [os sintomas] à zika lá na frente.

Para as mulheres em idade reprodutiva e que ainda não foram vitimadas pela epidemia, a cobrança é que o governo implemente políticas de educação sobre formas de transmissão do vírus e fornecimento de métodos contraceptivos de longa duração (como o DIU com hormônio), além de repelentes (mesmo para as mulheres grávidas).

Como se vê, são políticas públicas básicas que já deveriam ser executadas, mas como não o são, precisam virar lei. Ainda assim, o item mais abordado pela mídias refere-se ao último tópico da ação: o direito de as gestantes infectadas pelo Zika virus interromperem a gravidez quando houver sofrimento psíquico.

Com a proposta, se a gestante tiver tido contato com o vírus e apresentado os sintomas da doença, ela não seria obrigada a levar a gravidez adiante.

É preciso frisar que essas mulheres não seriam forçadas a interromper a gravidez, tampouco o aborto indiscriminado seria legalizado; elas apenas teriam direito a um aborto legal se assim desejassem.

Quem contextualiza melhor a questão é Vanessa Dios, presidente da Anis, que reforça que o diagnóstico da má-formação não entra no debate, porque em nenhum momento ele é considerado condição para a possibilidade de interrupção da gravidez.

“Não saber o que vai acontecer é muito torturante para a mulher, uma sensação que se aproxima do sofrimento mental do estupro. E aqui não entra também a discussão referente a anencefalia, em que há necessidade de confirmação do diagnóstico. É importante que fique entendido que uma epidemia é uma situação de tragédia humanitária e as mulheres precisam ter acesso a esse direito”, esclarece.

Se você acredita que o sofrimento psicológico pode se tornar uma desculpa para que as mulheres abortem, Dios consegue exemplificar com casos reais o que acontece diariamente no Nordeste do Brasil: as mulheres estão assustadas e com medo de engravidar e não sabem muito bem o que significa essa doença misteriosa, mas relatam que conhecem e já viram bebês que “nasceram com a cabeça pequena” ou que “reviram os olhinhos o tempo todo”.

“Uma colega da Anis que está fazendo uma incursão pelo sertão de Alagoas me contou especificamente sobre uma menina grávida muito jovem, de 14 anos, que dizia explicitamente ‘eu preciso de ajuda’. Meninas que não fazem ideia do que poderá acontecer. É um sofrimento mental resultado do desamparo e abandono por parte das políticas de Estado para as mulheres.”

A Organização das Nações Unidas (ONU) já defende a descriminalização do aborto em meio à epidemia de zika. Em entrevista à BBC Brasil, a porta-voz da entidade, Cecille Pouilly, recomendou que o aborto seja legalizado em cinco diferentes situações: em casos de estupro, incesto, risco à saúde física e mental da mãe e também em casos de bebês com deficiências consideradas graves.

 

Como fazer o diagnóstico de zika?

 

Se você chegou até aqui, pode estar se perguntando: por qual motivo não se faz um teste para comprovar a zika antes de realizar um aborto?

Dra. Vivian Avelino, médica infectologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, explica que o PCR (reação em cadeia da polimerase), único teste pelo qual é possível diagnosticar a doença com precisão, deve ser realizado em soro recolhido durante as duas primeiras semanas após o início dos sintomas, período em que se detecta o vírus ativo. Entretanto, esse é um exame extremamente caro e para realizá-lo na rede pública gasta-se um tempo enorme.

“É muito difícil conseguir coletar o sangue no tempo ideal porque, muitas vezes, a gestante nem imagina que tem o vírus, ou por não haver sintomas ou porque eles podem ser muito leves, apenas manchas vermelhas e febre, por exemplo. Dessa maneira, a mulher só vai associar [os sintomas] à zika lá na frente”, completa.

Portanto, é importante discernir que a ação não condiciona o direito ao aborto por meio da confirmação do diagnóstico confirmado por exame laboratorial. O diagnóstico clínico a partir dos sintomas já seria suficiente.

 

Veja também: Vídeo sobre sintomas da infecção por zika

 

Não se sabe ainda quando será o julgamento do STF, pois a agenda de fevereiro saiu sem incluir a pauta da zika. Mas assim que a data for estabelecida, a questão do aborto voltará ao cenário nacional. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já emitiu posicionamento dizendo que compreende o sofrimento das mulheres, mas que é a favor da vida.

Débora Diniz, pesquisadora da Anis e professora de bioética da Universidade de Brasília (UNB), sintetiza essa situação em um breve parágrafo de seu livro “Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global”: “É perturbador imaginar que somente uma ameaça global possa fazer o Brasil olhar para dentro e reconhecer que a urgência de cuidados e proteção não se resume a eliminar o mosquito, mas a cuidar de mulheres e crianças afetadas ou em risco pelo vírus”.

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