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Pediatria

Reabilitação em hemofilia | Entrevista

Publicado em 29/03/2012
Revisado em 11/08/2020

Atualmente, o trabalho de reabilitação em hemofilia revolucionou o tratamento da doença e garantiu aos portadores  melhor qualidade de vida.

 

Hemofilia é uma doença hereditária e genética que se manifesta basicamente em homens e caracteriza-se por uma desordem na coagulação do sangue. Os genes alterados são transmitidos pelos cromossomos sexuais maternos. Embora teoricamente haja a possibilidade de mulheres hemofílicas, os casos são raros e é necessário que, além da mãe ser portadora do gene, o pai seja hemofílico. Mesmo assim, só 25% dessas mulheres correm risco de manifestar a doença.

Os hemofílicos têm tendência a apresentar sangramentos difíceis de conter. Qualquer pequeno corte pode dar lugar a uma hemorragia. No entanto, nem todos sabem que sangramentos espontâneos podem ocorrer em locais submetidos à pressão, especialmente nas articulações que suportam carga. Presença de sangue nessas articulações produz um processo inflamatório que compromete a constituição dos tecidos na região afetada e provoca limitação importante dos movimentos.

Veja também: Aplicar medicamento em si mesmo é essencial para quem tem hemofilia

No passado, era difícil encontrar um hemofílico com 20 anos que não andasse apoiado numa bengala e, mesmo assim, caminhava com dificuldade. Atualmente, o trabalho de reabilitação em hemofilia revolucionou o tratamento da doença e garantiu aos portadores melhor qualidade de vida.

 

ARTICULAÇÕES VULNERÁVEIS

 

Drauzio – Quais são as articulações mais frequentemente atingidas pelo sangramento nos hemofílicos?

Claudete Lourenço – A hemofilia se manifesta através de episódios hemorrágicos. Todos os sistemas do organismo são passíveis de apresentar sangramento, mas os mais acometidos são os músculos e as articulações. Quando ocorrem nas articulações, por ordem de frequência, a mais atingida é o joelho, seguida da articulação do cotovelo e do tornozelo.

 

Drauzio – Os joelhos dá para entender, porque suportam muito peso. Mas a que se atribui o sangramento nos cotovelos?

Claudete Lourenço – Eu diria que, atualmente, os cotovelos sofrem muito por conta dos videogames que as crianças passam longas horas jogando ou, quando para ler ou estudar, elas se deitam em decúbito ventral e apoiam o queixo com as mãos, mantendo os cotovelos dobrados.

Isso para não falar nos traumas. Durante uma atividade qualquer, uma batida no cotovelo desencadeia o sangramento e não é incomum os portadores da doença nem se lembrarem como isso aconteceu. Nesse caso especial, eles são chamados de pequenos traumas não referidos e, dependendo da gravidade da doença, podem provocar sangramento abundante.

 

Sangramentos em articulações

 

Drauzio – Às vezes, são microssangramentos. Outras vezes, são mais abundantes. O hemofílico percebe sempre quando está tendo um sangramento numa articulação?

Claudete Lourenço – Quando é muito pequeno, pode não perceber, mas ao longo da evolução da doença e do trabalho que é feito com ele, passa a sentir que a articulação está diferente. Às vezes, a sensação é de formigamento. Em geral, porém, os sangramentos são acompanhados de dor, aumento de volume e da temperatura na articulação acometida.

 

Drauzio – A dor é muito forte?

Claudete Lourenço – Em alguns casos, muito forte e está associada ao volume de sangue contido na articulação. Quanto mais distendida a cápsula articular estiver, mais intensa será a dor. Às vezes, é tão forte que o paciente adota posturas antálgicas. Se o sangramento for no joelho, por exemplo, a dor o impedirá de apoiar a perna e de deambular normalmente.

 

Drauzio – Nos sangramentos, todos os componentes do sangue que deveriam irrigar a articulação dentro dos vasos extravasam e provocam uma irritação, um processo inflamatório no local. Além da molécula de hemoglobina que contém ferro, que danos provocam as células do sangue caindo na articulação? 

Claudete Lourenço – Um dos componentes do sangue é a hemossiderina que, absorvida pela membrana sinovial (membrana que envolve todo o espaço interno da articulação), acaba servindo de estímulo para novos sangramentos. Não é incomum o hemofílico, após o primeiro sangramento, entrar num ciclo de sangramentos repetidos. Esse sangue depositado dentro da articulação, ao longo do tempo, provoca destruição da cartilagem articular e, posteriormente, destruição biomecânica da articulação. Nesse estágio da doença, a dor resulta não mais do sangramento, mas do desgaste da articulação.

 

EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO E REABILITAÇÃO EM HEMOFILIA

 

Drauzio – Como evolui o quadro de sangramento nas articulações numa criança que não recebe tratamento médico adequado?

Claudete Lourenço – Penso que a resposta a essa pergunta pode ser dada com base no que se via antigamente, quando o tratamento da hemofilia não tinha evoluído. Por volta dos 10, 11 anos, a criança já apresentava artropatia grau 3, com destruição da cartilagem articular, formação de cistos subcondrais e alteração biomecânica da articulação.

 

Drauzio – O que representava a destruição dos ligamentos que constituem as articulações e dos tecidos que amortecem o choque dos ossos na vida dessas crianças?

Claudete Lourenço – Limitação e incapacidade. Incapacidade instalada em graus variados muito precocemente.

 

Drauzio – Com que idade essas crianças começavam a precisar de bengalas para caminhar ou tinham de usar cadeiras de rodas?

Claudete Lourenço – Até os dezesseis anos, elas conseguiam ir levando, mas entre os 16 e os 18 anos o problema se agravava a tal ponto que não era infrequente o hemofílico pedir aposentadoria por volta dos 20, 22, 24 anos uma vez que a dor se tornava tão intensa nos estágios mais avançados da artopatia hemofílica grau 3 e grau 4, que ele não tinha mais condições de trabalhar.

 

Drauzio – Em geral, as pessoas pensam que a hemofilia provoca hemorragias difíceis de controlar quando a pessoa se corta, por exemplo. Na verdade, esse é um problema menor. Piores são os sangramentos que ocorrem nas articulações.

Claudete Lourenço – Muito piores. A hemofilia é uma doença potencialmente incapacitante. O indivíduo está bem quando se deita e acorda com uma incapacidade que, se não for cuidada adequadamente, em pouco tempo, pode tornar-se definitiva.

 

TRATAMENTO DE REABILITAÇÃO EM HEMOFILIA

 

Drauzio – Quando as mães dos meninos portadores de hemofilia devem procurar o serviço de reabilitação em hemofilia?

Claudete Lourenço – Trabalhos apontam que os pacientes começam a ter as primeiras manifestações da doença por volta de um ano e meio, um ano e oito meses. Feito o diagnóstico, já cabe a orientação aos pais até para prevenir possíveis sangramentos mais adiante. Acreditamos que se os pais – especialmente a mãe que, em geral, é quem mais acompanha a criança – souberem lidar com a situação, o resultado será melhor, não só do ponto de vista físico, mas também do ponto de vista emocional.

 

Drauzio – No passado, a tendência era manter essas crianças em redomas de vidro.

Claudete Lourenço – Existe um trabalho de conscientização a respeito do que é considerado risco para essas crianças feito com pacientes e familiares na Divisão de Medicina de Reabilitação. Se o paciente reúne condições para entender o que estamos falando, trabalha-se direto com ele. Caso contrário, trabalha-se com os familiares.

A primeira coisa que eles precisam saber é que a condição muscular adequada torna as articulações mais estáveis e, portanto, a tendência ao sangramento será menor. Esse raciocínio ampliou o leque de atividades físicas disponíveis e os pacientes passaram a fazer exercícios contra resistência, conhecidos como programas de musculação. Na Divisão, são desenvolvidos protocolos e temos pacientes com hemofilia A e hemofilia B que estão se mantendo sem sangramento há longo tempo, apesar do esforço a que se submetem por conta dos exercícios contra a resistência.

 

Drauzio – Você falou em hemofilia A e hemofilia B. Qual é a diferença entre uma forma e outra da doença?

Claudete Lourenço – A hemofilia A ocorre por deficiência do Fator VIII de coagulação do sangue e a hemofilia B, por deficiência do Fator IX. Se um paciente com hemofilia B receber o Fator VIII quando tem um sangramento, não será beneficiado pelo medicamento e, vice-versa: no caso da hemofilia A, receber o Fator IX não surtirá nenhum efeito.

 

ORIENTAÇÃO AOS PAIS

 

Drauzio – Que orientação recebe a mãe quando chega à Divisão com uma criança pequena com diagnóstico de hemofilia?

Claudete Lourenço – Existem duas abordagens diferentes. Primeira: se o diagnóstico já foi feito, mas a criança não teve nenhum sangramento até aquele instante, as orientações iniciais visam aos cuidados preventivos. Vamos supor que a criança tenha um ano e seis meses. A cama em que dorme deve ser acolchoada para evitar batidas nas grades e possíveis sangramentos em decorrência desses traumas. As roupas não podem ser apertadas, especialmente no local das articulações, porque sangramentos também ocorrem por compressão. Quando começar a andar, jamais a criança deve ser amparada pelas mãos com os braços erguidos, porque essa posição pode desencadear um sangramento na musculatura ou na articulação do ombro.

Além disso, a mãe é orientada para fazer, no momento do banho, uma manipulação suave das articulações, mantendo a amplitude do movimento e trabalhando a musculatura da criança, mesmo que passivamente. Esses movimentos de flexo-extensão devem ser feitos sem forçar, pois movimentos bruscos podem provocar sangramentos.

No entanto, nessa mesma faixa de idade, se a criança já apresentou sangramento, especialmente sangramento articular, a preocupação é reabsorver o sangue o mais rápido possível para evitar desgaste da articulação e destruição de suas estruturas internas.

 

Drauzio – As crianças são muito elásticas. Não é perigoso forçar um pouco a movimentação?

Claudete Lourenço – No caso de crianças com um ano e seis meses que nunca tiveram sangramento, a mãe é orientada para entender os limites da criança e como fazer a manipulação. Dependendo de sua disponibilidade, participará de programas, duas ou três vezes por semana, para aprender a maneira correta de lidar com o filho hemofílico.

 

MEIOS FÍSICOS DE REABSORÇÃO

 

Drauzio – Como se faz para reabsorver o sangue que se deposita nas articulações?

Claudete Lourenço – Em fisiatria, recursos como o ultrassom e a iontoforese, chamados de meios físicos, são utilizados para reabsorção do sangue intra-articular.

 

Drauzio – Você poderia explicar em que consiste a iontoforese?

Claudete Lourenço – Utilizamos um aparelho de corrente galvânica com dois polos: o positivo e o negativo. No polo positivo, é colocada uma solução de biocloridrato de histamina, que age como anti-inflamatório. A seguir, os dois polos são acoplados à articulação e por eles passa uma corrente elétrica, galvânica, que empurra os íons positivos colocados no polo positivo para dentro da articulação a fim de que produzam o efeito necessário.

 

Drauzio – O que a criança sente durante o tratamento de iontoforese?

Claudete Lourenço – A sensação é de formigamento e não é desagradável. Consigo trabalhar com esse tipo de recurso com crianças pequenas, de dois anos, dois anos e meio, sem nenhum problema. Em geral, as aplicações de iontoforese começam dois dias depois de iniciado o sangramento.

 

PROVIDÊNCIAS INDISPENSÁVEIS NA REABILITAÇÃO EM HEMOFILIA

 

Drauzio – Recapitulando: uma vez constatado o sangramento, quais as providências necessárias?

Claudete Lourenço – Reposição do fator anti-hemofílico deficitário, imobilização e uso de gelo durante 48 horas contadas a partir do início do sangramento.

 

Drauzio – Como é feita a reposição do fator deficitário?

Claudete Lourenço – Pacientes com hemofilia A têm déficit do Fator VIII de coagulação do sangue; com hemofilia B, déficit do Fator IX. Atualmente, alguns deles estão treinados para fazer a auto-aplicação do fator que lhes falta em casa mesmo, por via endovenosa. Se não possuírem essa dose de urgência, devem procurar o centro hematológico em que estão matriculados para receber a reposição do fator o mais rápido possível. Esse tratamento é oferecido pelo serviço público de saúde gratuitamente.

 

Drauzio – Repor o fator deficitário de coagulação, imobilizar a articulação e aplicar gelo são as primeiras providências a serem tomadas quando começa o sangramento. E depois, qual a conduta adequada?

Claudete Lourenço – No terceiro dia, já existem condições para começar o processo de reabilitação. O intervalo não pode ser muito grande, porque a articulação comprometida e a musculatura a ela ligada logo começam a apresentar hipotrofia.

 

Drauzio – Como é feita a imobilização?

Claudete Lourenço – É feita por um médico utilizando goteira gessada. No dia seguinte, quando o paciente volta ao hospital para receber outra dose do fator anti-hemofilico deficitário, retira-se a goteira e avalia-se a necessidade de mantê-la ou não. Se não for necessário, tem início o tratamento de reabilitação.

 

Drauzio – Essa avaliação só pode ser feita por profissionais experientes.

Claudete Lourenço – E deve ser feita a cada dia. O hemofílico não é um paciente que pode ser visto hoje e daqui a um mês, por exemplo. O tratamento é dinâmico e parte de seu sucesso resulta do acompanhamento quase que diário do caso.

 

CONTINUIDADE DO TRATAMENTO

 

Drauzio – Resolvida a crise aguda, qual o próximo passo?

Claudete Lourenço – Evitar que o paciente volte a sangrar. Por isso, ele tem de ser orientado sobre o que fazer para evitar sangramento. Além disso, são necessários pelo menos 15 dias de intervalo entre uma hemorragia e outra para garantir que aquele ponto que sangrou dentro da articulação está com um coágulo eficaz.

 

Drauzio – O que o paciente deve fazer para controlar o sangramento?

Claudete Lourenço – Se o sangramento foi no joelho, por exemplo, ele não pode forçar essa articulação nem fazer movimentos de flexão ou extensão. Dependendo do volume de sangue coletado na articulação pode haver necessidade do uso de muletas para poupá-la de peso.

 

Drauzio – O hemofílico conseguiria andar sem o uso de muletas?

Claudete Lourenço – Em alguns casos, sim; em outros, não. Mesmo que tenha de usar muletas, será por um período curto. Na reabilitação da hemofilia, tudo é muito dinâmico. Ao mesmo tempo em que o paciente utiliza as muletas para evitar sobrecarga excessiva na articulação acometida pelo sangramento, estão sendo usados meios físicos para a reabsorção do sangue e feito um trabalho para o fortalecimento da musculatura.

 

Drauzio – O sangue que extravasou na articulação foi reabsorvido, a dor, o inchaço e o calor desapareceram, não há mais sinal de processo inflamatório no local. E aí, o hemofílico para ou continua com o trabalho fisioterápico?

Claudete Lourenço – Continua, porque o objetivo é trabalhar a musculatura para fortalecê-la a fim de evitar novos sangramentos. A musculatura do hemofílico precisa estar muito bem condicionada, com força e resistência, para a articulação ficar estabilizada.

 

Drauzio – Você poderia explicar a relação que existe entre o músculo e a articulação?

Claudete Lourenço – Para movimentar-se, a articulação precisa da musculatura que a ajuda a estabilizar-se. Articulação para ser estável necessita de musculatura fortalecida.

 

PERSPECTIVAS ATUAIS

 

Drauzio – Que perspectivas existem para a criança hemofílica nascida hoje, que conte com os recursos fisioterápicos especializados? Ela pode passar a vida inteira sem precisar de muletas, bengalas ou cadeira de rodas?

Claudete Lourenço – Se deixarmos de lado os imprevistos, por exemplo, o paciente estava ótimo com o programa de reabilitação, mas, por um golpe do destino, caiu acidentalmente e teve um trauma cranioencefálico, acredito que possa passar muito bem e que, se tiver de valer-se de algum meio auxiliar de locomoção, isso só acontecerá tardiamente na sua vida. Como se vê, as perspectivas atuais são muito diferentes daquelas que existiam no passado.

 

Drauzio – O tratamento de reabilitação em hemofilia consome muito tempo do paciente e de sua família?

Claudete Lourenço – Por volta de duas a três horas, duas ou três vezes por semana. Tudo depende das possibilidades do paciente e de sua família. Hoje em dia, convém ressaltar o entrave que representa a despesa com a passagem para ir ao local do tratamento no centro de reabilitação. Um detalhe perverso que tenho observado – e aqui cabe meu protesto veemente por conhecer a necessidade do hemofílico em manter o tratamento – é que até dois anos atrás ele conseguia, com certa facilidade, passe livre nos transportes coletivos. Hoje, mudaram as diretrizes; essa concessão tornou-se complicada e muitos abandonam o tratamento porque não têm como pagar a condução. Isso é realmente uma perversidade, porque eles dependem do tratamento para fortalecer a musculatura e se pararem…

 

CENTROS DE REABILITAÇÃO EM HEMOFILIA

 

Drauzio – Em São Paulo, existem centros de reabilitação gratuitos como o que funciona no Hospital das Clínicas?

Claudete Lourenço – Existe a Divisão de Medicina de Reabilitação do Hospital das Clinicas na Vila Mariana, uma unidade deslocada do complexo hospitalar em Pinheiros. A Escola Paulista de Medicina da Unifesp oferece alguns recursos de reabilitação em hemofilia, assim como o Lar Escola São Francisco. Entretanto, não se tem notícia de que exista um trabalho específico de fortalecimento muscular para pacientes hemofílicos como o que estamos desenvolvendo na Divisão de Medicina e Reabilitação. Parece que somos os pioneiros e os únicos a realizá-lo.

 

Drauzio – E nos outros estados, existem grupos trabalhando nessa área?

Claudete Lourenço – Existem centros no Rio de Janeiro e na Bahia, mas temos notado a tendência de pacientes de outros lugares buscarem tratamento de reabilitação em hemofilia em São Paulo. Por isso, nossa preocupação é difundir o modelo adotado na Divisão de Reabilitação para que o paciente tenha mais facilidade de acesso ao tratamento na região onde reside.

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