Dúvidas sobre quimioterapia são normais. A boa notícia é que os tratamentos estão cada vez mais seguros e com menores efeitos colaterais.
A quimioterapia, uma das mais importantes armas de que dispomos no tratamento contra o câncer, surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, quando as pessoas que trabalhavam em pesquisas com o gás mostarda (substância utilizada na guerra química) começaram a apresentar alterações nos glóbulos brancos, vermelhos e plaquetas e anemia. Isso chamou a atenção dos pesquisadores que passaram a estudar o assunto, porque há doenças em cancerologia, como muitas leucemias e alguns linfomas, que evoluem com aumento dos glóbulos brancos (leucócitos) e queda dos vermelhos (hemácias).
Realmente, o gás mostarda foi o primeiro quimioterápico utilizado, a primeira droga química que se mostrou capaz de destruir as células tumorais. Depois, vieram outras que transformaram a quimioterapia num ramo da medicina que tem salvado muitas vidas e aliviado o sofrimento dos doentes.
CONTROLE DOS EFEITOS COLATERAIS
Drauzio – No início, a quimioterapia provocava mais efeitos colaterais e havia médicos que achavam ser um tipo de tratamento que mais causava complicações do que ajudava os doentes. Por que essas drogas provocavam reações tão adversas?
Auro Del Giglio – Acredito que, na ciência, o aprendizado decorre em grande parte da experiência. Muitas das drogas, que são administradas até hoje, causam desequilíbrio dentro do corpo, fazendo com que as células do intestino, por exemplo, liberem substâncias que agem no sistema nervoso central e provocam náusea. Tal constatação fez com que, depois de alguns anos, fossem criadas drogas para bloquear a ação dessas substâncias. Aplicadas antes de iniciar a quimioterapia, elas diminuíram a incidência de náuseas.
Para ter uma ideia de como era a situação no passado, quando fiz oncologia nos Estados Unidos, existia uma ala no hospital reservada aos pacientes que tinham recebido quimioterapia. Eles ficavam em quartos escuros, vomitando e recebendo fluidos para não desidratar. Nos últimos 14 ou 15 anos, porém, com o aparecimento dessas drogas contra náusea, a quimioterapia converteu-se numa modalidade de tratamento ambulatorial, portanto, fora dos hospitais.
Da mesma forma que se descobriu o mecanismo da náusea causada pela quimioterapia, descobriu-se como evitar a queda das células brancas e vermelhas do sangue e, mais recentemente, a queda das plaquetas. Além disso, foram desenvolvidas técnicas para controlar os efeitos colaterais desfigurativos das drogas quimioterápicas. Hoje, existem perucas confeccionadas com cabelo natural e a queda do cabelo deixou de ser problema na vida das pacientes com câncer.
Drauzio – E, não seria exagero dizer que as pesquisas nessa área estão cada vez mais desenvolvidas…
Auro Del Giglio – Assim como a pesquisa se interessa em encontrar as melhores drogas, também se preocupa em fazer com que seus efeitos colaterais sejam minimizados com novas alternativas de tratamento. Provavelmente, nos próximos anos aparecerá algo para evitar a perda de cabelo. Estudos em ratos têm mostrado essa possibilidade.
Tudo isso me leva a crer que, daqui a algum tempo, existirão tratamentos quimioterápicos com menor toxicidade. Na verdade, já podemos contar com drogas orais muito menos tóxicas. No futuro, talvez a quimioterapia se converta num tratamento clínico como é hoje o de pressão alta e de diabetes.
MECANISMO DE AÇÃO DOS QUIMIOTERÁPICOS
Drauzio – O que existe no mecanismo de ação das drogas antineoplásicas capaz de explicar a existência de efeitos colaterais indesejáveis, como perda de cabelo ou queda dos glóbulos brancos e vermelhos?
Auro Del Giglio – Por muitos anos, o câncer foi visto única e exclusivamente pelo lado da célula que se divide de maneira acelerada para formar um tumor, e as drogas almejavam bloquear esse processo de divisão celular. Como alguns tecidos do corpo têm altos índices de proliferação, ou seja, como há tecidos normais cujas células se dividem muito rápido – por exemplo, as do cabelo, as do sangue e as presentes no epitélio gastrintestinal – não é de estranhar que essas drogas também agissem sobre eles.
Em outras palavras: drogas que funcionam como antídoto da divisão celular podem afetar as células normais do corpo que se dividem com muita frequência e provocar efeitos colaterais como queda dos cabelos, aftas, diarreia e diminuição das células do sangue.
Drauzio – Hoje, felizmente, esses efeitos podem ser minimizados.
Auro Del Giglio — Nos últimos 20 anos, foram descobertas algumas substâncias que conseguem fazer as células do sangue se dividirem de maneira mais rápida e intensa. Descobriu-se, ainda, que se forem administradas aos pacientes em paralelo à quimioterapia, seus efeitos adversos sobre o sangue serão diminuídos. Esses achados possibilitaram a prescrição de drogas quimioterápicas em doses mais altas e mais frequentes, uma vez que, não havendo diminuição maior das células do sangue e, consequentemente, perda das defesas do organismo, é menor a ocorrência de quadros infecciosos.
Graças aos avanços da pesquisa para controlar os efeitos indesejáveis, tão intensa quanto a que se empenha em descobrir novas drogas para o tratamento do câncer, administrar quimioterapia hoje ficou mais fácil do que era no passado.
Drauzio – Os esquemas de quimioterapia agem de forma diferente sobre as células normais. Alguns provocam queda de cabelo em 100% das pessoas. Outros, às vezes bastante agressivos, provocam muitos efeitos indesejáveis, mas os cabelos não caem. Na sua experiência, como a maioria dos pacientes reage diante da possibilidade de perder temporariamente os cabelos?
Auro Del Giglio – A queda dos cabelos pode representar um grande trauma especialmente para as mulheres que vão iniciar tratamento quimioterápico. Por isso, se soubermos que a droga a ser utilizada tem esse efeito colateral, a paciente é aconselhada a providenciar uma peruca antes de iniciar a quimioterapia. Muitas fazem a peruca com o próprio cabelo. Outras, com um tipo de cabelo tão parecido com o seu que não se nota a diferença. Eu mesmo, no retorno de uma paciente após a quimioterapia, já fiquei com medo de que a droga não tivesse sido administrada corretamente de tão naturais que estavam seus cabelos.
Além disso, a exposição na mídia de pessoas sem cabelo por causa da quimioterapia ou de artistas que precisam usar peruca por motivos profissionais beneficiou muito os doentes que passam por essa situação.
GANHO DE PESO
Drauzio – Você poderia mencionar outro efeito adverso da quimioterapia que não as náuseas e a perda de cabelo?
Auro Del Giglio — Gostaria de chamar atenção para outro efeito adverso da quimioterapia, às vezes mais importante do que a queda de cabelo: o ganho de peso. A propósito, publicamos recentemente um trabalho sobre câncer de mama no São Paulo Medical Journal mostrando que as mulheres ganham um quilo de peso por ciclo de quimioterapia. Isso é muito desagradável, porque o cabelo volta a crescer naturalmente, mas perder peso, às vezes, é difícil.
Na verdade, já conseguimos controlar as náuseas, dispomos de perucas que imitam com perfeição o cabelo natural da mulher, mas ainda temos o problema de ganho de peso pela frente.
Drauzio – Você poderia explicar o que são ciclos de quimioterapia?
Auro Del Giglio — Ciclos são unidades de tratamento quimioterápico administradas periodicamente por tempo determinado. Por exemplo, há drogas que são administradas a cada 28 dias; outras, a cada 21 dias e recentemente apareceram esquemas que exigem aplicações semanais.
Drauzio – O tecido gorduroso produz hormônios. Entre eles o estrógeno, um hormônio que tem ligação com o crescimento de células malignas em mama. O que se pode fazer para que a mulher não engorde?
Auro Del Giglio – Depois desse trabalho que publicamos, fizemos o que muitos médicos também estão fazendo. Instituímos dentro do programa de quimioterapia entrevistas com uma nutricionista e uma personal trainer, com o objetivo de diminuir o ganho de peso por meio de orientação dietética e aumento da atividade física.
Curiosamente, esse trabalho mostrou, ainda, uma tendência que beirou a significância estatística, ou seja, mulheres com câncer de mama que ganharam mais peso tiveram evolução menos favorável da doença. Por isso, estamos tentando atuar de maneira agressiva porque, além do aspecto estético envolvido, o ganho de peso parece estar relacionado com a evolução da doença.
Drauzio – Gostaria que você explicasse por que mulheres fazendo quimioterapia ganham peso, quando o esperado era que emagrecessem por causa desse tratamento potencialmente tóxico.
Auro Del Giglio – Diversos estudos foram feitos para verificar a incidência de alterações no metabolismo dessas pacientes. Mulheres com câncer de mama têm tendência maior ao hipotireoidismo, isto é, a uma diminuição no funcionamento da tireoide, que pode favorecer o ganho de peso. Na nossa casuística, 16% das pacientes apresentavam aumento de TSH no sangue, sinal de que a glândula estava funcionando mais lentamente.
Excluindo esses casos que são facilmente tratados com hormônio, é provável que as mulheres engordem porque aumentam a ingesta e diminuem a atividade física. Duas razões em especial colaboram para que isso aconteça. Primeira: a medicação contra a náusea contém corticoide, substância que estimula o apetite. Segunda: a sensação de fadiga e fraqueza, que pode ocorrer durante o tratamento, colabora para a redução da atividade física.
ORIENTAÇÕES BÁSICAS
Drauzio – Nesse sentido, que tipo de orientação você dá aos doentes com câncer?
Auro Del Giglio – O indivíduo com câncer necessita de uma abordagem completa, holística digamos, para que possa ser tratado sem trauma maior. No que se refere ao ganho de peso, não digo que deve abolir por completo os alimentos com alto teor calórico — os doces, por exemplo –, mas que deve evitá-los e optar por uma dieta rica em fibras.
Invariavelmente, recomendamos a prática de atividade física que, além de ajudar no controle do peso, traz outros efeitos benéficos para a paciente. Por fim, sugerimos sempre uma avaliação psicológica que pode transformar-se numa terapia breve, a critério do doente e do psicoterapeuta.
Drauzio – Há uma série de mitos em relação aos alimentos que devem ser ingeridos ou evitados durante a quimioterapia. Na lista dos recomendados, frequentemente estão o cogumelo do sol e a carne de rã, por exemplo. Existe algum fundamento científico nisso?
Auro Del Giglio – Desconheço qualquer fundamento. Na verdade, não recomendo nenhuma mudança nos hábitos alimentares. Recomendo redução do açúcar e inclusão maior de fibras na dieta, princípio que pode ser adaptado à preferência ou à cultura da paciente.
Drauzio – No mundo moderno, parece que as pessoas perderam o hábito de beber água. Você recomenda que seus pacientes bebam bastante água durante a quimioterapia?
Auro Del Giglio – Beber água é importante especialmente para o paciente que está tomando medicações que dependem dos rins para serem eliminadas. Por isso, recomendo sempre que ele beba por volta de 1 litro de água por dia.
MEDOS E DÚVIDAS
Drauzio – Quais são as queixas e dúvidas mais frequentes que as pessoas têm em relação ao tratamento quimioterápico?
Auro Del Giglio – Hoje, as pessoas já não têm tanta dúvida a respeito de se devem ou não fazer quimioterapia. A cultura do tratamento oncológico está ligada à quimioterapia e o doente provavelmente se sentiria desprotegido se não a recebesse. Isso facilitou muito o nosso trabalho.
As pessoas não têm dúvidas, mas têm medo. Medo do desconhecido. É um tratamento novo, absolutamente diferente de todos os outros que experimentaram na vida.
Quando se defronta pela primeira vez com a doença, o paciente com câncer precisa aprender uma série de termos que nunca ouviu nem quis ouvir falar. Por isso, é importante que recebam indicação de livros, sites e outras publicações que o ajudem a entender a proposta do tratamento quimioterápico e os efeitos que ele pode causar.
Drauzio – Deixando de lado a ansiedade que a perspectiva do tratamento provoca, que medidas práticas você sugere? Você já falou da orientação nutricional para evitar ganho de peso e das orientações para enfrentar a queda de cabelo.
Auro Del Giglio – O mais importante é esclarecer quais os efeitos colaterais esperados e garantir que a equipe médica estará disponível para atender e orientar os pacientes e seus familiares, se esses efeitos ou outros sintomas se manifestarem. Procuro sempre abordar os efeitos mais comuns da quimioterapia que vai ser usada naquele caso específico. Explico, por exemplo, que dali a duas semanas os cabelos irão cair e que podem aparecer aftas ou diarreia. Insisto para que eles entrem em contato conosco imediatamente se ocorrer febre ou sangramento.
FUTURO DA QUIMIOTERAPIA
Drauzio – Como você vê o futuro da quimioterapia?
Auro Del Giglio – Acho que a quimioterapia, como é aplicada hoje, tende a desaparecer num futuro próximo e que o tratamento do câncer vai estar a cargo dos clínicos gerais. Por isso, na faculdade onde trabalho, estamos fazendo os residentes em clínica geral passarem por estágio em oncologia com o intuito de prepará-los para atender esses doentes.
Veja o que já está acontecendo agora. Uma medicação nova chamada Iressa, que provavelmente chegará ao Brasil nos próximos meses, tem-se mostrado eficiente no tratamento do câncer de pulmão. É uma medicação simples de ser administrada – basta um comprimido diário – que não requer a intervenção de um cancerologista.
Conquistas como essa me fazem crer que, num futuro não muito distante, um clínico geral poderá tratar de pacientes com alguns tipos de câncer. Essa nova realidade é muito importante, se considerarmos que a incidência da doença vem aumentando. As pessoas estão vivendo mais e os agentes carcinogênicos ambientais correm soltos. A começar pelo cigarro. Parar de fumar é fundamental não só para o fumante naquele momento, mas como parte de um programa de prevenção do câncer do pulmão e de vários outros órgãos também.
Não se pode descartar a hipótese de que esse conjunto de fatores de risco possa fazer – talvez o uso do termo seja indevido – a doença assumir proporções epidêmicas no futuro. Portanto, cada vez mais serão necessários profissionais habilitados para atender pacientes com câncer.
Drauzio – Que mudanças trará essa nova visão?
Auro Del Giglio – Sinto que as mudanças ocorrerão em duas frentes. Haverá uma convergência dos tratamentos já conhecidos para outros mais inteligentes, mais certeiros no seu alvo, que deixarão de agir sobre as células saudáveis do corpo e atacarão apenas as células tumorais.
Por outro lado, é preciso preparar os médicos de outras especialidades para lidar com os casos mais simples de câncer, deixando a cargo dos oncologistas apenas os mais complicados e que demandam tratamento mais complexo. Isso é fundamental para o atendimento amplo da população, uma vez que o número de pacientes está aumentando a cada dia.
Drauzio – Além disso, você não acha que maior conhecimento da oncologia funcionará como instrumento importante para os profissionais da clínica geral fazerem diagnósticos mais precoces?
Auro Del Giglio – Não só para o diagnóstico, mas para a orientação inicial do caso. Se o clínico geral encontrar um tumor característico de quadro neoplásico, precisará saber quais os passos adequados para que o doente chegue ao cancerologista clínico ou ao cirurgião oncológico com maior chance de cura. Qualquer demora nessa conduta pode causar sérios danos. Por isso, como professor que sou, considero de extrema importância educar médicos e a população com câncer e sem câncer no sentido da prevenção e tratamento da doença.
Drauzio – Você acha que evoluiremos rapidamente nesse sentido?
Auro Del Giglio – Acho que cabe aos professores das faculdades de medicina criar uma nova geração de médicos mais preparada para enfrentar essa situação. Um trabalho que fizemos, e que será publicado em breve na revista da Associação Médica Brasileira, para avaliar o nível de conhecimento dos médicos em exercício na Fundação do ABC em relação às medidas preventivas, revelou que o nível estava abaixo do esperado. Então, o que fizemos? Mudamos o currículo de forma a dar maior ênfase ao estudo da prevenção. Com isso, provavelmente, os futuros médicos estarão mais preparados nesse campo. Não há duvida de que o currículo das escolas de medicina é o instrumento ideal para gerenciar os conhecimentos a serem ministrados visando às mudanças que estão ocorrendo.