Cegueira | Entrevista

A cegueira demanda cuidados especiais e um grande esforço de adaptação. Veja na entrevista quais as dificuldades para os portadores de diferentes idades.

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Publicado em: 21 de dezembro de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Boa parte dos estímulos ambientais chega até nós por meio do sentido da visão, por isso a cegueira demanda cuidados especiais e um grande esforço de adaptação.

O ser humano é resultado de um genoma que recebe dos pais e da interação desse genoma com o meio ambiente. A criança pode nascer perfeita com todos os neurônios uniformemente distribuídos pela retina. No entanto, se taparmos um de seus olhos, por dois ou três meses, quando retirarmos a tampão, ela enxergará perfeitamente com o olho que não sofreu a oclusão e estará irreversivelmente cega do olho obstruído.

A visão se estabelece pela interação dos neurônios da retina com a luz que vem do exterior. Se, por uma razão qualquer, a criança não for submetida a esse estímulo luminoso desde os primeiros meses da vida, poderá crescer sem nunca ter enxergado.

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Como os olhos são porta de entrada para conhecer a realidade ao redor, fica difícil imaginar que ideia faríamos do mundo se tivéssemos nascido sem enxergar, nem como reagiríamos se ficássemos cegos, mais tarde, depois de adultos ou na velhice, quando a dificuldade de adaptação é maior.

VISÃO DO RECÉM-NASCIDO

 

Drauzio – Como enxerga uma criança ao nascer?

Maria Aparecida Haddad – Ao nascer, a criança enxerga em torno de 30 vezes menos do que um adulto com visão normal. Ela tem condição de observar a luz e seguir vultos de alto contraste em distâncias muito pequenas. A falta de resposta, principalmente a estímulos de luz muito próximos, é sinal de que deve ser submetida a uma avaliação oftalmológica.

Drauzio – O pediatra do berçário tem condições de fazer essa avaliação?

Maria Aparecida Haddad – Ele tem condições de avaliar alguns reflexos da criança aos estímulos luminosos, ainda no berçário. O teste do fundo vermelho, ou teste do olhinho, que consiste na emissão de uma fonte de luz nos olhos do recém-nascido, permite detectar a ocorrência de um reflexo vermelho no fundo do olho, sinal de alguma doença já existente no nascimento.

FORMAÇÃO DE CONCEITOS

 

Drauzio – Dá para ter uma ideia de como a criança que nunca enxergou vê o mundo?

Maria Aparecida Haddad – Primeiro, é preciso considerar que 80% das informações a respeito do mundo e do meio ambiente nos chegam pela visão, que tem também o poder de organizar as informações que os outros sentidos fornecem. Quando ouço um barulho e olho para o lugar de onde ele vem, sei se um livro caiu da estante ou se um carro bateu em outro, por exemplo.

Na criança com cegueira congênita, esse processo é seriamente prejudicado. Ao contrário do que se pensa, ela não tem o uso coordenado dos outros sentidos. Na verdade, não possui os outros sentidos desenvolvidos para operacionalizar as informações recebidas de forma a suprir a falta de visão. Portanto, precisa ser acompanhada e orientada para o uso organizado das informações sensoriais que chegam até ela.

Drauzio – Como é feito esse trabalho? Como passar para a criança conceitos como a forma dos objetos, cor e outros mais abstratos?

Maria Aparecida Haddad – A criança nunca vai ter a representação visual do que é uma cadeira ou uma bola. Ela vai conhecer os objetos por meio do tato, do som, da finalidade ou função que têm. Ao apresentar-lhe uma bola, por exemplo, é preciso fazer com que a explore tatilmente, com que perceba as alterações de contorno e de textura. Isso, associado às informações de finalidade e função, ajuda-a a ir formando conceitos.

A criança que enxerga aprende muita coisa por imitação. Copiando o que as outras pessoas fazem, formula conceitos de permanência, de causa e efeito e os automatiza. A criança cega não tem essa possibilidade de apreensão. Tudo precisa ser apresentado e ensinado para ela utilizando as vias sensoriais íntegras, o que pressupõe um longo processo de treinamento.

CAPACIDADE DE DESENVOLVIMENTO

 

Drauzio – Quando a surdez congênita passa despercebida, as crianças não aprendem a falar porque não escutam e, frequentemente, não apresentam desenvolvimento neuropsicomotor adequado. A criança cega consegue ter um desenvolvimento normal apesar da deficiência?

Maria Aparecida Haddad – Ela pode ter um desenvolvimento normal se receber atendimento adequado precocemente. Caso contrário, haverá um atraso em seu desenvolvimento. Daí, a importância da intervenção precoce. Quando a cegueira é detectada na infância, a criança deve ser encaminhada para profissionais especializados para ser estimulada o quanto antes. Essa medida faz parte de uma programação de acompanhamento definitiva  e de longo prazo.

Além disso, é importante pesquisar a incidência de algum problema neuromotor associado à cegueira, o que torna absolutamente necessária uma avaliação integral dessas crianças. No entanto, mesmo que nada seja detectado, só o fato de não terem acesso às informações provenientes do meio externo, não alcançarem objetos, não receberem estímulos do rosto materno, paterno e de outras pessoas irá provocar atraso no desenvolvimento neuromotor.

ESCOLARIZAÇÃO

 

Drauzio – Com que idade deve começar a escolarização dessas crianças?

Maria Aparecida Haddad – O início da escolarização da criança cega deve obedecer ao mesmo critério cronológico das crianças com visão normal. Ela precisa receber atendimento precoce para evitar prejuízos em seu desenvolvimento que atrasem esse momento.

Drauzio – Como a criança cega é alfabetizada?

Maria Aparecida Haddad – Ela é alfabetizada pelo método braile que utiliza um alfabeto constituído pela combinação de seis pontos básicos. Hoje, no Brasil, crianças cegas podem contar com a máquina de escrever em braile, que facilita muito o dia a dia do escolar cego. Seu preço caiu muito nos últimos anos o que a tornou mais acessível.

Drauzio – Nós temos escolas em número suficiente e profissionais treinados para atender a população de crianças cegas?

Maria Aparecida Haddad – Existem escolas para receber a criança cega, mas muitas não possuem material nem profissionais treinados para atender as necessidades dos portadores de cegueira. Além da ausência de professores que dominem o método braile, as escolas não dispõem de máquinas de escrever em braile e a criança é obrigada a usar uma régua chamada reglete que serve de guia para perfurar o papel. Segundo os educadores que lidam com estudantes cegos, embora seja um recurso mais barato e de fácil acesso, seu uso torna a atividade pedagógica extremamente cansativa, porque exige muito mais tempo para fazer as lições na escola e em casa.

Outro ponto importante é que a criança cega não tem domínio do espaço que a cerca. Precisa usar uma bengala que lhe dê noção do ambiente e das barreiras arquitetônicas que tem pela frente. O uso adequado e eficaz da bengala é o que lhe dá segurança para caminhar sozinha, com maior independência e autonomia. Muitas escolas não contam com profissional habilitado para passar as noções básicas de orientação e mobilidade por meio da bengala, o que faz muita falta.

Drauzio – Que tipo de escola vocês recomendam para a criança cega?

Maria Aparecida Haddad – A linha atual da educação é não segregar a criança cega matriculando-a em escolas especiais e essa tendência deve ser incentivada. A escola deve ser a mesma frequentada pelas crianças normais, só que tem de estar preparada para recebê-la e realizar sua inclusão naquele ambiente e na dinâmica com os outros alunos.

Drauzio –  No Brasil, as escolas públicas têm condições de atender esse público com cegueira?

Maria Aparecida Haddad – Muitas escolas públicas têm as chamadas salas de recursos, isto é, salas de apoio onde a criança aprende braile e trabalha o conteúdo curricular em braile.

Drauzio – Há livros pedagógicos escritos em braile para o ensino fundamental?

Maria Aparecida Haddad – Os livros pedagógicos têm de ser transcritos para o braile, mas o acesso ao conteúdo programático não é difícil porque cada estado da federação possui pelo menos uma unidade do Centro de Apoio Pedagógico (CAPES),  responsável pela transcrição do material pedagógico para o braile.

Drauzio – E os livros de histórias, de contos de fada, cuja leitura faz parte da formação da criança, são publicados em braile?

Maria Aparecida Haddad – Não como primeira linha de edição, mas como transcrição. Há instituições que fazem a transcrição pelo método braile e mantêm uma biblioteca à disposição do deficiente visual. Por exemplo, no Centro Cultural Vergueiro, há uma biblioteca em braile à disposição das pessoas que não enxergam.

CEGUEIRA ADQUIRIDA

 

Drauzio – Vamos considerar as pessoas que nasceram enxergando e, por causa de uma retinopatia, de trauma ou de lesão no nervo óptico, perderam ou vão perdendo gradativamente a visão até ficarem cegas. Como é a adaptação dessas pessoas?

Maria Aparecida Haddad – Eu diria que é extremamente complicada a adaptação de uma pessoa que deixou de enxergar e que o apoio da família e do meio é de extrema importância.

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A fase de luto pela perda da visão varia muito. Há quem supere o problema num período mais curto e quem nunca o supere. De qualquer forma, pessoa com cegueira adquirida tem a representação visual do mundo e dos objetos na memória, o que facilita suas atividades e ações, mas não a dispensa de fazer uso dos mesmos recursos de adaptação estabelecidos para os portadores de cegueira congênita. Precisa aprender a usar o braile e a movimentar-se.

Atualmente, existem recursos tecnológicos disponíveis que facilitam a vida dos cegos. Na área da informática, por exemplo, há programas com vozes sintetizadas capazes de ler tudo o que está escrito na tela do computador e que ajudam a navegar na internet.

Drauzio – Você tem ideia de quanto custam os computadores que operam com braile?

Maria Aparecida Haddad – A máquina de escrever em braile deve estar custando em torno de R$ 1.200,00. Os programas de computador com voz sintetizada produzidos no Brasil são distribuídos gratuitamente. Os mais sofisticados, porém, devem custar de oitocentos a mil dólares cada um.

CEGUEIRA NOS IDOSOS

 

Drauzio – Como reagem as pessoas que perdem a visão numa fase tardia da vida, justamente quando os filhos cresceram e saíram de casa e elas ficam mais solitárias?

Maria Aparecida Haddad – O idoso passa por muitas perdas e a perda da resolução visual é apenas mais uma que ele soma no decorrer da vida. Um estudo mostrou que 23% da população americana com mais de 80 anos apresentam deficiência visual importante. A partir dos 60 anos, porém, o número de pessoas com dificuldade para enxergar começa a crescer bastante. Na verdade, precedida pelas cardiopatias e artrites, a perda da visão é a terceira queixa dos indivíduos nessa faixa de idade e não há dúvida de que a soma desses problemas de saúde limita muito as atividades e o relacionamento social das pessoas mais velhas.

Drauzio – A adaptação dos idosos também é mais complicada, porque o sistema nervoso já não é tão maleável. Qual é o aprendizado possível nessa fase da vida?

Maria Aparecida Haddad – Geralmente, o idoso manifesta muita resistência para aprender qualquer coisa diferente. Vamos considerar, como exemplo, os idosos em que a baixa visão os impede de ler. Hoje, os oftalmologistas podem prescrever lentes especiais, recursos de ampliação da imagem que favorecem a leitura, mas exigem que o material escrito seja colocado bem perto dos olhos para proporcionar uma resposta visual satisfatória. Embora ler fosse uma atividade que lhes dava prazer, muitos se recusam a usar esses recursos.

Já para os idosos cegos, a orientação é outra. Com o objetivo de melhorar sua qualidade de vida, eles são aconselhados a procurar profissionais que os ajudem a organizar a rotina das atividades diárias dentro do ambiente em que vivem, mas esses também se mostram resistentes em adotar tal conduta.

Drauzio – Ao contrário das crianças e dos adolescentes, a reação das pessoas mais velhas diante da cegueira costuma ser de revolta.

Maria Aparecida Haddad – Porque as reações são diferentes, a família precisa insistir em que a pessoa idosa com baixa visão seja avaliada e receba orientação a respeito do que pode fazer para melhorar sua qualidade de vida. Não é porque um dos canais de contato com o exterior está comprometido, que ela vai fechar-se para o mundo.

Drauzio – Existem caminhos alternativos que podem ajudá-las a superar esse problema. Lembro de um paciente de 85 anos que falava da perda da visão com muita revolta e mágoa. “Eu tinha um enorme prazer na leitura e não consigo mais ler”, era sua principal queixa. Já que gostava tanto, sugeri, que contratasse uma pessoa que lesse para ele. Ele ficou pensando, pensando e depois falou: ”Como nunca me ocorreu uma solução tão lógica?”.

Maria Aparecida Haddad – Pessoas como esse senhor nunca se permitiram ser dependentes, mas se encontram numa situação que dependem dos outros e que não é fácil enfrentar.

Drauzio – De que outros recursos eles podem valer-se?

Maria Aparecida Haddad – Além dos programas na área da informática, existem recursos de vídeo-magnificação. São monitores acoplados a uma câmera que ampliam letras, textos e imagens. O idoso que não consegue ver as fotos dos netos ou de outros parentes pode valer-se desses recursos e viver melhor. O grande problema, no Brasil, são os impostos. Esses materiais são importados e seu alto custo os torna proibitivos para grande parte da nossa população.

Site: laramara.org.br

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