Refletir sobre o próprio consumo de álcool na quarentena é um exercício importante e pode prevenir que a bebida se torne um problema.
Diferentemente do que sugeriu o presidente da Bielorrússia Alexander Lukashenko a respeito das medidas para conter a pandemia no país, consumir vodca não mata o novo coronavírus. A declaração é descabida, mas, para muitos, pode ser que a fala tenha sido encarada como uma justificativa (mesmo que anedótica) para beber mais. Poucos meses depois do episódio, o escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Europa viu a necessidade de fazer um comunicado alertando que bebidas com alto teor alcoólico não matam o vírus da covid-19. Nesse mesmo alerta, também incentiva os governos a aplicarem medidas que limitem o consumo de álcool durante o confinamento.
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No Brasil, ainda não há estudos consolidados sobre o aumento do consumo de álcool durante o período de isolamento social, mas o crescimento é esperado por profissionais da área da Saúde – e, convenhamos, muitos de nós, mesmo não sendo da área, intuitivamente daríamos esse chute. “Subjetivamente, a gente constata isso. Tenho vários pacientes e colegas meus fazendo referência a esse fenômeno”, afirma Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e coordenador do Serviço de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Antes de partirmos para recomendações genéricas – e, muitas vezes, moralistas – a respeito do consumo de drogas, é importante convidarmos quem bebe a refletir sobre o papel que o álcool tem no seu dia a dia. “Cada pessoa é um universo. Pode soar clichê, mas é importante trazer um pouco de empatia para esse assunto. A questão do julgamento, de apontar o dedo, não ajuda o outro em nada. Cada um terá hábitos que lhe servem para alguma coisa”, afirma Maria Angélica Comis, psicóloga e mestre em Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas.
Por que bebemos?
Uma das motivações para o uso de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, é a busca por prazer. Culturalmente, associamos o álcool a situações prazerosas, encontros entre pessoas queridas e momentos de lazer de forma geral. Também vemos com frequência o uso do álcool como uma espécie de “lubrificante social”, que ajuda a nos sentirmos mais soltos e à vontade nas mais diversas situações. “O álcool é um depressor do sistema nervoso central, e um de seus efeitos é a desinibição. Estando mais desinibido, você não fica tão preso às suas neuroses”, explica Comis.
Beber para amenizar algum tipo de mal-estar emocional também é uma motivação comum, e momentos sensíveis como o que vivemos podem acentuar esse tipo de uso, ainda que, de tão naturalizado, a pessoa não perceba. “Durante a pandemia, na minha atuação como psicóloga, percebi muitas pessoas relatando um desconforto generalizado, mas sem conseguir nomear exatamente esse sentimento. O que me fez convidá-las a refletir sobre o luto. Estamos vivendo um luto coletivo, constante, há meses. É um misto de ansiedade, impotência e incerteza. Às vezes, o álcool surge para aliviar essa sensação”, conta a psicóloga.
Refletir sobre o próprio consumo como estratégia de autocuidado
Essas são apenas algumas das diversas motivações que alguém pode ter para decidir tomar umas. A questão, frente a um cenário tão amplo, é conseguir olhar para seus hábitos relacionados ao álcool para entender qual é o papel que você atribui à substância na sua vida – assim como podemos estender essa dica a outros tipos de hábitos, como cultivar plantas ou comer chocolate.
Se eu estou me sentindo muito angustiado, muito ansioso, muito nervoso, e eu não sei muito bem como lidar com isso, eu posso usar o álcool como um ‘remédio’ para o mal-estar. Mas esse é um padrão de uso que é mais parecido com o uso de quem fica dependente, porque, na verdade, o álcool não é um remédio.
Um bom ponto de partida pode ser imaginar um tabuleiro de xadrez. De um lado, estão as peças que representam aquilo a que você geralmente recorre para buscar prazer e, do outro, o que você busca para anestesiar algum sofrimento. Tente posicionar a “peça álcool” em um desses lados. Assim como no jogo, é importante observar a movimentação que essa peça pode fazer. Por que, em determinado momento, você resolveu que iria beber? Colocado dessa forma, a pergunta pode até parecer um pouco descolada da realidade; afinal, ninguém costuma se servir de cerveja e se fazer esse tipo de pergunta. Mas a intenção do exercício é imaginar como seria sem o álcool, e refletir sobre os sentimentos que podem vir com a resposta.
Não se trata de se encher de perguntas a cada gole, mas o questionamento pode auxiliar as pessoas a desenvolverem um olhar de autocuidado em relação ao próprio consumo. “Esse autoquestionamento tem valor tanto no tratamento como na prevenção”, aponta Dartiu Xavier da Silveira.
Se você passou a beber em mais momentos em comparação com antes da pandemia, por exemplo, ou até se manteve a mesma frequência de antes, como seriam as atividades que hoje você realiza acompanhadas de álcool se não estivesse bebendo? Aqui, podemos pensar em desde uma videochamada com os amigos até assistir a um filme sozinho, ou mesmo trabalhar, fazer faxina, cozinhar. As situações são inúmeras. O importante é tentar refletir sobre o que está por trás do uso.
Álcool não é medicamento
Se o álcool não mata o novo coronavírus, como sugeriu o presidente da Bielorrússia, tampouco cura as dores causadas pela pandemia. Por isso, encará-lo como um remédio para o sofrimento pode se tornar preocupante: “Se eu estou me sentindo muito angustiado, muito ansioso, muito nervoso, e eu não sei muito bem como lidar com isso, eu posso usar o álcool como um ‘remédio’ para o mal-estar. Mas esse é um padrão de uso que é mais parecido com o uso de quem fica dependente, porque, na verdade, o álcool não é um remédio. Então, não é para ele ser usado dessa forma. E quando ele é usado dessa forma, em geral as pessoas começam a usar demasiadamente, abusar, a ponto de alguns ficarem dependentes”, explica Xavier.
Ainda assim, podemos entender o beber como uma atividade prazerosa, mas isso não significa que ele não possa trazer, também, consequências negativas. Para muitas pessoas é preciso acontecer algo extremamente grave ou haver um abalo claro no trabalho, nas relações ou em qualquer instância da vida para que o uso de álcool seja um problema, mas isso não necessariamente é verdade. Às vezes, consequências negativas não são tão evidentes. Ou seja: ainda que um padrão de uso tenha “cara” de recreacional, não necessariamente ele é, e o autoquestionamento pode ajudar a tornar as coisas mais claras para você mesmo.
Se você topar esse exercício e sentir, a partir das suas respostas, que é preciso pedir ajuda, não sinta vergonha nem medo. Recorra a pessoas de que você gosta e em quem você confia, e procure um profissional para acompanhamento terapêutico. O Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza gratuitamente um serviço de cuidado assistido aos usuários de álcool e outras drogas, o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Pelo site da prefeitura de sua cidade é possível buscar a unidade mais próxima.