O massacre do Carandiru foi aplaudido por muitos, mas foi um dos responsáveis pelo fortalecimento do crime organizado.
Veja o mal que a estupidez e a burrice são capazes de causar.
Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre aids para um grupo de travestis presas na Casa de Detenção — o Carandiru.
No meio da explicação, entrou o diretor do presídio, doutor Ismael Pedrosa, que me convidou para um café na sala dele. Foi o que fiz ao redor do meio-dia, quando a aula terminou.
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Na conversa, ele tirou do armário uma teresa, corda improvisada com tiras de cobertor enroladas em fios de arame, descoberta na cela de um ladrão de banco que pretendia galgar a muralha, em busca da liberdade.
Quando dei por conta, conversávamos havia mais de uma hora. Levantei para me despedir:
— Já é tarde, estou atrasado e empatando o senhor, aqui.
— Que nada, respondeu ele. É sexta-feira, dia de faxina nas celas para receber as visitas no fim de semana. É o dia mais tranquilo: ninguém mata, ninguém morre.
No fim da tarde, só acreditei que a rebelião de que falavam era mesmo na Casa de Detenção, quando liguei a televisão e reconheci o Pavilhão Nove no meio da fumaça.
Foram mortos 111 detentos, o maior massacre já ocorrido numa prisão brasileira.
Não havia justificativa para aquele morticínio. Quando começou a confusão, os rebelados se apressaram em expulsar os funcionários de plantão, decisão temerária tomada por presos inexperientes, como eram os do Nove, pavilhão que alojava os mais jovens, encarcerados pela primeira vez.
Homens com muitos anos de cadeia estão cansados de saber que manter reféns numa hora dessas, é providência primordial para impedir a entrada das forças de repressão, que colocarão em risco a integridade física dos rebelados.
Sem reféns no interior do pavilhão convulsionado, o doutor Pedrosa propôs às autoridades reunidas na sala da diretoria, enfrentar a situação da forma convencional, tantas vezes empregada pelos funcionários da Detenção: cortar luz, água, comida e voltar na manhã seguinte para negociar.
Homem destemido, acostumado a andar sozinho pela cadeia inteira, foi para o portão que dava acesso ao pátio do Nove, na tentativa de evitar o pior. Mas, assim que o portão foi aberto, ficou espremido entre ele e a parede, quase esmagado pelo tropel dos policiais que invadiram com os cachorros e as metralhadoras. Deu no que deu.
A culpa caiu nas costas do coronel que comandou a operação.
Quem conhece um mínimo da hierarquia militar, no entanto, sabe que um coronel jamais daria uma ordem como “dominar a rebelião a qualquer preço” na véspera de um dia de eleições, sem consultar seus superiores. O nome desses criminosos, ele levou para o túmulo.
Não tivessem os governantes dado a ordem para a PM invadir o Pavilhão Nove naquele 2 de outubro, é provável que não existissem quadrilhas com milhares de membros, como as atuais. Os inconsequentes que aplaudiram o massacre, agora cobram medidas enérgicas para acabar com a violência urbana.
Ao contrário da repercussão negativa na imprensa brasileira e internacional, muita gente apoiou o massacre. Houve até quem lamentasse a timidez da repressão. O próprio coronel se elegeu deputado estadual duas vezes, com dezenas de milhares de votos, exibindo o número 111 na propaganda eleitoral.
Quais foram as consequências dessa estupidez coletiva?
O nascimento do Primeiro Comando da Capital, organização que comanda com mão de ferro o crime organizado na maior parte do país.
Qual a relação entre o surgimento do PCC e o massacre do Carandiru?
Basta ler o estatuto da fundação do partido que teria vindo para “combater a repressão dentro do sistema prisional paulista” e “vingar a morte dos 111 no massacre do Carandiru”.
Não conheci um carcereiro sequer que tenha trabalhado numa cadeia sem facções de criminosos. O trabalho era evitar que alguma delas fosse capaz de eliminar as demais, para assumir o comando. O massacre subverteu a disciplina nos presídios e afrouxou perigosamente o controle do Estado.
Hoje o PCC está presente nos 27 estados da Federação, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Argentina, Peru e tenta dominar as rotas de tráfico de cocaína dos países andinos para a Europa e a África.
Não tivessem os governantes dado a ordem para a PM invadir o Pavilhão Nove naquele 2 de outubro, é provável que não existissem quadrilhas com milhares de membros, como as atuais. Os inconsequentes que aplaudiram o massacre, agora cobram medidas enérgicas para acabar com a violência urbana.
Lamento dizer-lhes que o crime organizado foi longe demais. Não está mais ao alcance das mordidas dos cachorros nem dos disparos das metralhadoras. O combate agora exige inteligência, preparo técnico e intelectual, qualidades raras nos governantes de hoje.