Publicado em 20/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Há vinte anos, ficou demonstrado que resíduos de cocaína deixam traços persistentes, não só no organismo dos usuários e em suas famílias, mas também entre as fibras do papel moeda.

 

A cocaína deixa marcas por onde passa. Não apenas no organismo dos usuários, em suas famílias, na vida comunitária e na estrutura social corrompida, mas no dinheiro que circula de mão em mão.

Há vinte anos, ficou demonstrado que resíduos de cocaína deixam traços persistentes entre as fibras do papel moeda. Com a introdução simultânea do euro na Comunidade Europeia, pesquisadores alemães iniciaram um estudo para determinar os índices de contaminação das notas circulantes, como tentativa de obter um método mais confiável para avaliar os padrões de consumo em cada país.

A forma atual de estimativa é baseada nas quantidades apreendidas pela polícia, no número de casos de “overdose” atendidos nos hospitais e nas respostas anônimas obtidas por meio de questionários, métodos estatísticos falhos porque sujeitos a inúmeras variáveis.

Na Europa, uma nota de 20 euros tem duração média de um ano, no decorrer do qual passa pelas mãos de milhares de pessoas de todas as camadas sociais. A cocaína se espalha pelo dinheiro não só por meio do contato direto com as mãos, mas porque é hábito comum entre os usuários inalar o pó através de canudos improvisados com as cédulas, que contaminariam outras ao entrar em contato com elas nos bolsos e nas máquinas dos bancos.

 

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Com o emprego de um aparelho muito sensível, o espectrômetro de massa, Fritz Sörgel e Verena Jakob, pesquisadores de Nuremberg, relataram à revista “Science” que a maioria dos euros atualmente circulantes carregam vestígios da droga. Os autores dizem que o método de detecção é rápido, sensível, e tem uma grande vantagem: em vez de o pesquisador viajar pelos quatro cantos de um país atrás de dados, o dinheiro o faz por conta própria.

Aplicando essa técnica, Paull Brett, da Universidade de Dublin, encontrou na Irlanda uma das maiores taxas de notas com resíduos entre todos os países da comunidade europeia. Numa amostra de 120 notas, todas continham a droga.

Os resultados obtidos acompanham as estatísticas tradicionais sobre o uso de cocaína nos países europeus. A liderança cabe à Espanha, seguida de perto pela Itália e, mais recentemente, pela Irlanda.

Essa tecnologia, no entanto, não é a única disponível nesse novo ramo da epidemiologia. Depois de inalada, a cocaína passa cerca de uma hora em interação com os mediadores químicos cerebrais; depois é decomposta pela ação de enzimas do fígado, retirada da corrente sanguínea pelos rins e excretada através da urina.

Como a espectrometria de massa é de fato sensível, pode ser aplicada para detectar a presença da droga nas estações de esgoto das cidades. Parece ficção científica, mas não é.

Em Granada, no sul da Espanha, Sörgel e Jakob demonstraram a viabilidade da estratégia de testar uma cidade inteira. Em amostras colhidas em estações de tratamento de esgoto, eles procuraram traços de um composto (benzoilecgonina), subproduto do metabolismo da cocaína excretado na urina, que se decompõe lentamente. Repetindo os testes em intervalos regulares, foi possível definir um padrão de consumo sazonal, com picos no verão e nos fins de semana.

Estudos conduzidos por Roberto Fanelli, com as águas do rio Pó, nas imediações de Milão, produziram resultados muito semelhantes. Na cidade suíça de Lugano, centro turístico, amostras colhidas seriadamente revelaram que segunda-feira era o dia de consumo mais baixo e que nos fins de semana havia aumento de 30% a 40%, em relação à média diária.

Os resultados obtidos em Londres, permitiram calcular índices de consumo da ordem de 1kg de cocaína para cada 1 milhão de habitantes. Esse número sugere que 4% dos jovens de 15 a 30 anos sejam usuários, ao contrário dos 2% citados nas estatísticas oficiais.

Na Alemanha, país em que a polícia consegue apreender 1 tonelada por ano, amostras colhidas em rios e estações de esgoto de 29 regiões, permitem concluir que os alemães consumem cerca de 20 toneladas por ano.

Apesar de ainda existirem algumas dificuldades de padronização dos testes, os dados colhidos nesses estudos epidemiológicos permitem identificar áreas e comunidades em que o uso é mais prevalente.

Podem, ainda, servir de base para entender melhor como a cocaína se dissemina na população, para planejar estratégias educativas de prevenção ao uso. E, também, para deixar ainda mais claro que não há esperança de acabar com o uso de drogas ilícitas através de medidas policiais.

Referência: Science 316, 42-44, 2007

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