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Raízes orgânicas e sociais da violência urbana | Artigo

Publicado em 24/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Raízes orgânicas da violência urbana envolvem predisposições genéticas e fatores sociais.

 

A violência urbana é uma enfermidade contagiosa. Embora acometa indivíduos vulneráveis em todas as classes sociais, é nos bairros pobres que ela se torna epidêmica. A prevalência varia de cidade para cidade, e de um país para outro. Como regra, a epidemia começa nos grandes centros e se dissemina pelo interior. A incidência nem sempre é crescente; a mudança de fatores ambientais pode interferir em sua escalada.

Sabe-se que os genes herdados exercem influência fundamental na estrutura e função dos circuitos de neurônios envolvidos nos mecanismos bioquímicos da agressividade. É bom ressaltar, porém, que os fatores genéticos não condicionam o comportamento futuro: o impacto do meio ambiente é decisivo. Os mediadores químicos liberados e a própria arquitetura das conexões nervosas que constituem esses circuitos são dramaticamente modelados pelos acontecimentos sociais da infância.

As estratégias que as sociedades adotam para combater a violência flutuam ao sabor das emoções; o conhecimento científico raramente é levado em consideração. Como reflexo, o tratamento da violência evoluiu muito pouco no decorrer do século 20, ao contrário do que ocorreu com as infecções, câncer ou aids.

 

Características físicas e índole criminosa

 

A explicação para o atraso no desenvolvimento de técnicas eficazes para tratar a violência está nos erros do passado. No século 18, um anatomista austríaco chamado Franz Gall desenvolveu uma teoria em torno da seguinte ideia: a maioria das características humanas, inclusive o comportamento antissocial, seria regulada por regiões específicas do cérebro. Cada comportamento estaria sob o comando de um centro cerebral específico. Quanto mais robusto fosse o centro mais intensa seria a expressão do comportamento controlado por ele. Essa teoria ganhou o nome de frenologia.

Franz Gall imaginava que, ao crescer, os centros cerebrais exerciam pressão contra os ossos da cabeça, deixando neles saliências que poderiam ser vistas ou palpadas. As pessoas com tendências criminosas poderiam, então, ser reconhecidas pelo exame cuidadoso dessas protuberâncias e depressões ósseas presentes no crânio.

Com o tempo, a frenologia caiu em descrédito, mas a tentação de identificar a aptidão para o crime por meio de características físicas persistiu. Cerca de cem anos depois da frenologia, um italiano especialista em antropologia criminal chamado Cesare Lombroso criou uma nova doutrina que ressuscitou a associação das características físicas com uma suposta índole criminosa. Tais características constituiriam os “stigmata”. De acordo com Lombroso, os tipos humanos com testa achatada e assimetria nos ossos da face, por exemplo, seriam criminosos potenciais. Quem tivesse esses traços era classificado como tipo lombrosiano e visto com extrema desconfiança nos tribunais.

 

Veja também: Raízes biológicas da violência

 

Lobotomia e controle medicamentoso da agressividade

 

Em 1949, Egas Muniz, neurocirurgião português, ganhou o prêmio Nobel de Medicina em reconhecimento por haver introduzido a lobotomia, na prática médica. Na lobotomia, são seccionados os feixes nervosos que chegam e os que saem do lobo frontal, localizado na parte anterior do cérebro, estrutura responsável pela tomada de decisões a partir das informações captadas pelos sentidos. Inicialmente indicada apenas nos casos de pacientes muito agressivos, as lobotomias se popularizaram segundo critérios de indicação duvidosos e, muitas vezes, serviram como instrumento de poder ou castigo, especialmente nos estados totalitários (mas não apenas neles).

Nos últimos 50 anos, essas teorias caíram gradativamente em descrédito, até se tornarem execradas pelos estudiosos. Hoje, são consideradas exemplos típicos de ideologias pseudocientíficas que foram utilizadas para justificar arbitrariedades graves.

Paralelamente ao abandono dessas ideias, criou-se em certos setores da sociedade um medo generalizado de que os cientistas realizassem pesquisas laboratoriais, capazes de conduzir à obtenção de medicamentos apaziguadores dos instintos violentos.

Imaginava-se que essas drogas poderiam ser administradas preventivamente às comunidades carentes de recursos, para acabar com a violência milagrosamente, sem que as classes dominantes precisassem abrir mão de seus privilégios.

Pensamentos desprovidos de bases científicas como esses trouxeram péssima reputação aos estudos do comportamento antissocial. A politização afastou a comunidade acadêmica da área e a violência urbana passou a ser entendida como um fenômeno de raízes exclusivamente sociais. Qualquer tentativa de caracterizar um substrato orgânico para a agressividade física gerava debates carregados de emoção e até manifestações políticas.

 

Aspectos biológicos da violência

 

O panorama começou melhorar a partir da década de 1970, quando os americanos tomaram consciência de que as dificuldades enfrentadas com as minorias do centro deteriorado das grandes cidades de seu país não desapareceriam espontaneamente. Ao contrário, a violência aumentava apesar do maior rigor em puni-la. Os institutos oficiais começaram, então, a financiar pesquisas para conhecer melhor o lado biológico da violência.

As informações científicas acumuladas nos últimos 30 anos permitem afirmar que a violência tem um substrato biológico, de fato. O comportamento humano, no entanto, não se acha condicionado às características que herdamos de nossos pais. Ele é resultado de interações sutis entre genes, condições ambientais e experiências de vida.

 

Bioquímica e fatores sociais envolvidos na violência

 

A revista “Science”, que divide com a “Nature” prestígio e popularidade inigualáveis no meio acadêmico internacional, acaba de publicar um número dedicado a discutir a violência com base nas informações científicas disponíveis atualmente. Vamos resumir, aqui, o que a ciência sabe sobre a bioquímica e os fatores sociais envolvidos na violência, de acordo com essa revisão primorosa publicada pela “Science”:

1) O papel do álcool – O rato coloca o nariz num buraco da gaiola. No buraco há um sensor que detecta a presença do nariz e ativa um circuito elétrico. Nesse instante, num bebedor de água ao lado, caem algumas gotas de bebida alcoólica que o rato bebe rapidamente. Cada dose de álcool que cai é calculada de acordo com o peso corpóreo do rato para corresponder à de uma cerveja, no homem.

Invariavelmente, ao terminar o drinque, o rato volta a colocar o nariz no buraco com sensor, para obter outro. Se o pesquisador deixar, o animal bebe até cair. Por isso, depois de tomar o equivalente ao segundo drinque, o fornecimento de álcool é interrompido. Nesse momento, um rato sóbrio é colocado na mesma gaiola do que bebeu.

Os ratos são animais territoriais; numa situação dessas costumam atacar o intruso até que este levante as patas da frente para evitar mordidas e declarar submissão. O rato que bebeu os dois drinques não respeita a postura submissa do sóbrio, corre atrás e morde o outro muitas vezes. Mais de vinte vezes em cinco minutos, segundo o autor do experimento, Klaus Miczek, da Universidade de Tufts.

Numa sociedade como a ocidental, em que o hábito de tomar dois drinques por dia é considerado abstinência por muitos, não é de se estranhar que de cada três crimes violentos, dois sejam cometidos sob efeito de bebidas alcoólicas. Grande parte das agressões mortais tão comuns na periferia das cidades brasileiras acontece nos bares, e muitos ladrões ingerem álcool antes de sair para o assalto.

2) Neurotransmissores – A experiência descrita com o álcool deixa claro que existem mediadores químicos envolvidos nos mecanismos que conduzem à agressividade. O mediador mais estudado tem sido a serotonina, substância que transmite sinais entre os neurônios, ligada às sensações de prazer, mas também às depressões, distúrbios de alimentação e dependência de cocaína.

A serotonina, provavelmente, exerce controle inibitório sobre a agressividade impulsiva. Desarranjos no sistema de produção e metabolismo da serotonina têm sido descritos em pacientes psiquiátricos agressivos, homens impulsivos e violentos e em suicidas.

Numerosos estudos documentaram níveis baixos de serotonina no líquor, isto é, no líquido que banha a medula espinal e o cérebro, em animais agressivos e também no homem. Como demonstração de causa e efeito, se administrarmos drogas que modificam os níveis de serotonina no líquor, teremos alterações proporcionais na agressividade: drogas que diminuem as concentrações de serotonina aumentam a agressividade; as que aumentam serotonina tornam os animais mais dóceis.

Diversos pesquisadores estão concentrados na caracterização dos receptores aos quais a serotonina se liga na superfície dos neurônios, para exercer seu efeito. Várias drogas que interferem com esses receptores reduzem a agressividade em ratos e macacos.

Outro neurotransmissor que parece estar envolvido na modulação da violência é a vasopressina. Em 1998, Coccaro e Ferris, da Universidade de Chicago, dosaram as concentrações de vasopressina no líquor de 26 homens portadores de distúrbios anti-sociais. Verificaram que níveis mais altos de vasopressina estavam associados a comportamento mais agressivo.

3) Lobo frontal – Muitos autores acreditam que o córtex do lobo frontal, camada de massa cinzenta que recobre o lobo, exerce influência importante no controle da impulsividade e do comportamento violento.

Em 1997, A. Raine, estudou 41 homens encarcerados e um grupo de 41 indivíduos livres para servir de grupo controle, na Universidade da Califórnia. Todos foram submetidos ao PET- scan, tomografia que permite analisar as áreas cerebrais que estão em atividade num dado momento. Os resultados mostraram que o córtex da parte da frente do lobo frontal apresentava alterações fisiológicas nos presos condenados por crime de morte.

O mesmo autor publicou outro estudo, no qual foram determinadas as dimensões do córtex do lobo frontal em diversos portadores da assim chamada personalidade antissocial, que haviam sido responsáveis por atos violentos. Neles, a substância cinzenta ocupava uma área 11% menor. Inquirido sobre o significado desse achado, Raine respondeu à “Science”: “Não tenho a menor ideia”.

4) A genética – Embora muitos considerem politicamente incorreto, os estudos conduzidos entre irmãos gêmeos univitelinos (iguais) criados na mesma família ou crescidos sem contato em lares distantes, são altamente sugestivos de que um componente genético esteja envolvido na agressividade.

Na Holanda, há um caso clássico, relatado em 1993, de uma família cujos membros do sexo masculino haviam se engajado em crimes de morte, estupros, roubos e incêndios criminosos. A análise genética mostrou que esses homens tinham um defeito muito raro num gene que codifica a produção de uma enzima chamada MAOA, que age quebrando as moléculas de diversos neurotransmissores.

Em 1999, S. Manuck e colaboradores publicaram um estudo realizado com 251 voluntários testados para a presença de mutações num gene responsável por uma enzima que limita a produção de serotonina. Os autores foram capazes de identificar mutações nesse gene associadas a diversas manifestações de agressividade, incluindo a tendência de experimentar sensação de raiva sem motivo aparente.

Em ratos, já foram identificados 15 genes que interferem com a agressividade, entre eles o da MAOA. A identificação de alguns desses genes, às vezes, aparece nas manchetes da imprensa leiga, como representando o descobrimento do “gene da agressividade”. Conhecimentos elementares de genética, entretanto, demonstram que comportamentos complexos como a violência nunca são regulados por um gene único; estão sob o comando de uma constelação de genes que interagem através de mecanismos de extrema complexidade. Muitos biólogos moleculares estão convencidos de que essas interações são tão complexas, que dificilmente serão entendidas a ponto de podermos manipulá-las com segurança para modificar um comportamento de forma previsível, por mais elementar que seja ele.

5) A violência das crianças – Sem menosprezar a influência do meio, é inegável que a tendência a reagir de forma violenta diante de uma situação adversa varia de uma criança para outra, sugerindo raízes pré-natais.

Segundo a “Science”, os pesquisadores atuais procuram entender a violência como expressão final de um conjunto de fatores de risco. Entre eles, estaria incluída uma vulnerabilidade biológica, genética ou desenvolvida na fase pré-natal, trazida à superfície ou reforçada pelo meio social.

Crianças cronicamente violentas frequentemente apresentam comportamento hiperativo, dificuldade de concentração na escola, ansiedade, confusão mental, impulsividade, ideação fantasiosa e tendências autodestrutivas. Esses distúrbios emocionais se agravam quando essas crianças se agrupam com outras, portadoras de comportamentos semelhantes.

Estima-se que 2% dos meninos e menos de 1% das meninas apresentem essas características. É importante ressaltar que a maioria das crianças violentas deixam de sê-lo na adolescência. No caso dos adultos mais agressivos, porém, as raízes do comportamento antissocial costumam já estar presentes na infância, sugerindo que a agressividade seja um fenômeno bastante estável no decorrer da vida.

O grupo de R. Tremblay, da Universidade de Montreal, vem acompanhando mil meninos canadenses a partir dos 6 anos de idade, desde 1984. A maioria dos que eram fisicamente violentos na infância abandonou esse comportamento ao redor dos 12 anos, mas em 4% a agressividade se tornou crônica. Tremblay identificou dois fatores de risco nesse grupo: as mães dos meninos eram menos instruídas e tiveram seus filhos numa idade mais precoce. Teoricamente, seriam mães menos preparadas para educar crianças problemáticas.

Entre os traços associados ao comportamento violento das crianças está a falta de empatia, isto é, a dificuldade de colocar-se no papel do outro. Um dos exemplos é a crueldade com os animais, uma das primeiras manifestações dessa incapacidade.

Estudos conduzidos por D. Rowe, na Universidade do Arizona, mostram que crianças com QI abaixo da média, também apresentam risco mais alto de se tornarem adultos violentos.

O grupo de A. Raine, que acompanha cerca de 1800 crianças das ilhas Maurício, publicou um trabalho demonstrando que as crianças com baixa frequência cardíaca aos três anos de idade tinham maior probabilidade de serem fisicamente agressivas aos onze. Em outros estudos, os mesmos autores mostraram que meninos com ondas cerebrais mais lentas e condutância cutânea mais baixa (uma medida da sudorese através da pele) tinham maior probabilidade de acabar na prisão, anos depois.

Os autores desconfiam que esses parâmetros sejam simples indicadores de um sistema nervoso central mais desregulado. Nesses casos, quando o estresse é mantido, os circuitos de neurônios envolvidos no controle da agressividade ficariam sobrecarregados e entrariam em colapso.

Apesar de essas conclusões serem criticáveis por não levarem em conta a influência poderosa do meio ambiente, a existência da agressividade física na infância é irrefutável. Se não considerarmos as consequências da agressão e olharmos apenas para o comportamento agressivo, a idade mais violenta de todas é a de dois anos. R. Temblay afirma na revista Science: “A pergunta que tentamos responder nos últimos 30 anos, é como as crianças aprendem a agredir. A pergunta está errada; o certo seria perguntar como elas aprendem a não agredir.Os bebês não se matam uns aos outros, só porque lhes impedimos o acesso aos revólveres”.

 

Predisposição à agressividade e à violência

 

Evidências científicas sugerem que a reatividade emocional de um indivíduo pode predispô-lo à agressividade física. Essa propensão está associada a um baixo limiar de ativação de um conjunto de emoções e estados de espírito negativos: raiva, ansiedade e agitação, entre outros.

As técnicas modernas de neuroimagem permitiram identificar diversas regiões cerebrais envolvidas nos circuitos de neurônios que amplificam, atenuam ou mantêm as emoções. A ativação experimental ou a lesão desses centros altera a intensidade de expressão dos estados emocionais regulados por eles. Por exemplo, lesões provocadas numa estrutura cerebral chamada amígdala prejudica a percepção de expressões de medo e lesões numa pequena área do lobo frontal podem desregular a forma de exprimir raiva. Em camundongos, lesões de determinadas áreas do lobo frontal transformam um animal calmo em impulsivo e violento.

O estado emocional-afetivo de cada indivíduo é estabelecido por uma delicada rede de neurônios que convergem para determinadas áreas do cérebro, e pelos neurotransmissores liberados por eles na condução do estímulo. As reações individuais dependem, então, da sintonia fina dessa circuitaria de neurônios em ação.

Como a violência não é um fenômeno homogêneo, suas manifestações são graduadas por circuitos específicos de neurônios. Por exemplo, um estudo conduzido entre 41 homens condenados por assassinato mostrou que os autores de crimes premeditados, predatórios, apresentavam um padrão de metabolismo do lobo pré-frontal diferente daqueles que haviam cometido o assassinato como consequência de uma explosão impulsiva.

Indivíduos bem adaptados são capazes de regular voluntariamente suas emoções negativas e aproveitar determinadas indicações do meio, como as expressões faciais ou vocais de medo ou raiva, para definir a melhor estratégia de comportamento a ser adotada. É provável que aqueles predispostos à violência apresentem anormalidades na condução de estímulos através dos circuitos responsáveis por essas estratégias adaptativas.

Há evidências claras de que genes herdados dos pais influenciam a estrutura e função dessas circuitarias de neurônios. O fator genético, no entanto, interage com as influências do ambiente desde as fases mais precoces do desenvolvimento da criança. A própria estrutura das conexões envolvidas nesses circuitos é dramaticamente modelada pelos acontecimentos sociais da infância.

As pesquisas atuais para caracterizar a função das fibras nervosas que entram e saem dos centros cerebrais moduladores das emoções abrirão caminho para intervenções medicamentosas associadas a estratégias psicossociais preventivas nas populações de alto risco. Para isso, os primeiros passos estão dados: reconhecer que tanto a agressão impulsiva quanto a premeditada, independentemente das causas responsáveis por elas, são doenças contagiosas que refletem anormalidades fisiológicas nos circuitos de neurônios que controlam as emoções.

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