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Orlando Villas-Bôas | Entrevista

Publicado em 02/04/2012
Revisado em 11/08/2020

Orlando Villas-Bôas percorreu o Brasil, estabelecendo relações com povos indígenas, fundando cidades e abrindo caminhos importantes para o sertão brasileiro.

 

Orlando Villas-Bôas é um grande herói nacional, um homem que percorreu o Brasil, desbravando o sertão desconhecido à frente da expedição Roncador-Xingu, denominada Marcha para o Oeste. Ao lado de seus irmãos, Cláudio e Leonardo, fundou cidades, construiu pistas de pouso, abriu caminhos que serviram de base para construção de estradas importantes para a região.

Nessa incursão pelo Brasil distante do litoral, Villas-Bôas estabeleceu relações pacíficas com várias tribos indígenas, defendendo sempre a preservação de sua cultura. Para os irmãos Villas Bôas, os intrusos indesejáveis eram os brancos que ameaçavam os índios com sua presença.

Esta entrevista, em que o sertanista conta histórias pitorescas e até certo ponto inéditas, foi realizada no início de 2002 numa praia que se formou perto da boca do rio Jaú, um dos inúmeros rios que desaguam no Negro, o rio de águas escuras que banha Manaus. É uma praia efêmera que não resiste à chegada das chuvas e que não voltará a aparecer exatamente no mesmo lugar no período de seca seguinte.

Ao lado de seus irmãos, Cláudio e Leonardo, Orlando fundou cidades, construiu pistas de pouso, abriu caminhos que serviram de base para construção de estradas importantes para a região.

Nessa incursão pelo Brasil distante do litoral, Villas-Bôas estabeleceu relações pacíficas com várias tribos indígenas, defendendo sempre a preservação de sua cultura. Para os irmãos Villas-Bôas, os intrusos indesejáveis eram os brancos que ameaçavam os índios com sua presença.

Esta entrevista, em que o sertanista conta histórias pitorescas e até certo ponto inéditas, foi realizada no início de 2002 numa praia que se formou perto da boca do rio Jaú, um dos inúmeros rios que deságuam no Negro, o rio de águas escuras que banha Manaus. É uma praia efêmera que não resiste à chegada das chuvas e que não voltará a aparecer exatamente no mesmo lugar no período de seca seguinte.

 

CURIOSIDADES DA INFÂNCIA

 

Orlando Villas-Bôas: Nasci em 12 de janeiro de 1914, em Santa Cruz do Rio Pardo, uma cidade do oeste paulista onde meu pai foi prefeito. Meus pais tiveram 11 filhos. Sou exatamente o do meio, o do meio do pelotão. Em 1920, o velho foi advogar na capital do Estado e trouxe toda a família. Fomos morar nas Perdizes, na rua Monte Alegre, bem em frente onde hoje é a PUC, na época um terreno íngreme e descampado que permitia enxergar, lá longe, a primeira fábrica construída naquela área pelo Matarazzo.

Por volta dos 8 anos, fui estudar no Grupo Escolar do Largo das Perdizes, mas a vida de meu pai era muito atribulada e ele matriculou os filhos Leonardo, Cláudio, Nélson e eu no “Ateneu Paulista” de Campinas. Era um colégio interno que exigia um representante responsável pelo aluno na cidade. Por questão de amizade com meu velho, a escolhida foi a baronesa de Campinas, uma senhora que nos mandava buscar todos os domingos e nos ensinava boas maneiras.

Campinas era a terra das andorinhas. No final da tarde, o céu ficava escuro, porque as aves toldavam todo o oriente. Era uma visão de fantástica beleza! Depois de uns tempos, as andorinhas desapareceram. Acho que as comeram todas.

Embora tenhamos voltado a morar em São Paulo, tínhamos uma formação interiorana. Meu pai tinha sido também prefeito de Campos Novos de Paranapanema, cidade do Estado de São Paulo famosa pela produção de laranjas, fruta de exploração trabalhosa. É preciso colher uma por uma, com cuidado, sem machucar. Consequentemente, os fazendeiros dependiam de muita mão de obra. Por isso, dois proprietários espanhóis decidiram arrebanhar índios para trabalhar nos laranjais e viajaram a Mato Grosso de onde trouxeram 53 índios terenas a pé até Campos Novos.

Meu pai ficou indignado. Mandou prender os espanhóis e colocou os índios no tribunal do conselho, um terreno nos fundos da prefeitura onde eram recolhidos os animais que perambulavam soltos pelas ruas. O velho fez construir um galpão para abrigar os índios até ter tempo de organizar uma expedição que os levasse de volta à terra natal. Veja que o assunto índio começou bem cedo na vida da gente. Na verdade, antes mesmo de eu ter nascido.

O tempo foi passando. Meu pai tinha uma casa comissária em Santos, advogavaem São Paulo e a família gozava de situação financeira folgada. Tínhamos sido transferidos para o “Colégio Paulista” do professor Rocha Campos na capital, mas veio a crise do café e a vida mudou.

 

AMIGO DE JÂNIO QUADROS

 

Orlando Villas-Bôas: Certo dia, apareceram na fazenda da família em Cândido Mota um médico e um menino. Quem passava por lá tinha quase obrigação de conhecer meu velho. Enquanto conversavam, meu pai mandou que levássemos o menino passear na represa cuidando para que não entrasse na água se não soubesse nadar. Assim foi feito. Trinta anos mais tarde, recebemos uma visita no Xingu recomendada por um primo que era farmacêutico em Cândido Mota: “Esse sujeito, o menino que vocês levaram brincar na represa, é o atual prefeito de São Paulo”.

Conversa vai, conversa vem, contei-lhe a história do garoto que fora com o pai visitar o velho. “Que engraçado, pois comigo aconteceu coisa parecida”, observou ele. “É claro, a história é a mesma porque as personagens são as mesmas”, disse-lhe eu. Ficamos amigos daíem diante. Jânio visitou o Xingu várias vezes e criou o Parque Nacional do Xingu, talvez a única reserva indígena que funciona a contento até hoje.

 

MARCHA PARA O OESTE

 

Orlando Villas-Bôas: Em 1937, saí do exército desempregado. A crise do café havia abalado as finanças da família e fui trabalhar na Standard Oil Company, a Esso do Brasil. Estava sob minha responsabilidade controlar os estoques de combustível da companhia. Cláudio arranjou emprego na Telefônica, e Leonardo, numa companhia importadora.

Morávamos os três num quarto de pensão no centro de São Paulo. Cláudio, fanático pelo interior, comprou um enorme mapa do Brasil e todas as tardes sonhávamos longas viagens debruçados sobre ele. Disso até o plano de abandonar os empregos e partir foi só questão de tempo e oportunidade. O trabalho de Rondon já era conhecido naquela época e nos servia de estímulo.

Getúlio Vargas governava o País e a convite de Pedro Ludovico, fundador de Goiânia e governador de Goiás, foi conhecer a região. Voltou escandalizado. A população brasileira estava toda concentrada na faixa litorânea. Passando o Araguaia, o Brasil era pátria dos índios.

Sob a orientação de Getúlio e com o intuito de promover a interiorização do país, foram criadas a expedição Roncador-Xingu e a Fundação Brasil Central. Era época de guerra, não se podia sobrecarregar o erário e para angariar fundos recorreu-se aos paulistas que não se negaram a colaborar.

Sabendo que o ministro encarregado de organizar a expedição estava em São Paulo, fui procurá-lo. Ele não aceitou contratar-nos, porque estavam admitindo somente sertanejos analfabetos, considerados mais resistentes para assumir tal empreitada.

Apesar do fracasso dessa tentativa, Cláudio e Leonardo partiram para Goiás Velho e esperaram por mim, que precisava ser demitido do emprego na Esso. Quando finalmente consegui chegar, caminhamos 170 km até encontrar o rio Araguaia. Compramos uma canoa e remamos 22 dias até atingir o rio das Mortes. Ali a fundação estava se alicerçando e fomos admitidos como trabalhadores analfabetos. Entrei como auxiliar de pedreiro. Cláudio e Leonardo foram trabalhar na enxada para construir o campo de pouso. Descoberto o estratagema, porém, passei a ser secretário da base; Leonardo, chefe do almoxarifado e Cláudio, chefe do pessoal.

Tempos depois, parte da expedição rumou para o norte. O objetivo era transpor o Araguaia e avançar até Manaus. A bússola do Cláudio nos orientava na travessia dos rios e nas longas caminhadas por dentro da mata bruta. Quando estávamos nas margens do rio das Mortes, preparando-nos para entrar na serra do Roncador, fomos avisados de que na região havia muitas aldeias de índios. Ficou, então, ajustado que o governo de Goiás enviaria soldados da polícia, sujeitos recrutados no garimpo, para fazer a vanguarda da expedição e limpar o caminho. Quando me inteirei do que realmente isso significava, mandei por um jornalista do Correio da Manhã, que estava de partida para o Rio de Janeiro, uma carta para o Marechal Rondon com a notícia de que os índios daquela área corriam perigo. Por ordem superior, a operação vanguarda foi suspensa. A expedição deixou de ser paramilitar e de contar com a ajuda da polícia goiana.

O chefe da expedição nada comentou a respeito da carta, mas designou os três irmãos Villas-Bôas para seguir na frente. Levamos conosco 14 sertanejos contratados no garimpo, lugar de gente violenta. Era comum ocorrerem duas ou três mortes por dia nesses lugares o que garantia aos garimpeiros dessa região a fama de homens sem lei do Brasil Central. No entanto, conseguimos mantê-los sob controle. Atravessamos 11 vezes a serra do Roncador e nenhum tiro foi desferido apesar de a expedição ser paramilitar e cada sertanejo receber um mosquetão de 50 tiros.

Para não perder o controle, havia um trabalho de doutrinação permanente. Todas as noites, reuníamos os sertanejos ao redor da fogueira e fazíamos uma preleção. Mostrávamos que os invasores daquelas terras éramos nós. Éramos nós que ameaçávamos os índios e não o contrário. Durante todo o tempo que ali permanecemos, só houve um contratempo. Logo no primeiro dia fomos atacados pelos xavantes. Um dos trabalhadores ficou muito nervoso e disparou um tiro do mosquetão. Os índios fugiram. Nós, porém, lhe tomamos a arma e lhe demos autorização para retornar se quisesse. Ele ficou e obedeceu às ordens daí em diante.

 

MÃO DE OBRA SERTANEJA

 

Orlando Villas-Bôas: O trabalho de abrir picada é árduo, muito difícil e a mão de obra com que contávamos era toda nordestina e recrutada nos garimpos do Brasil Central, principalmente nos dos rios das Garças, Araguaia e em seus afluentes.
Esses homens atravessavam a Bahia, entravam no rio dos Peixes, desciam para o Araguaia de onde tratavam logo de sair porque os índios Carajás não gostavam de ver gente estranha por aquelas bandas.

Uma das características do sertanejo é não ter pressa. A viagem durava entre seis meses e um ano. De uma hora para outra, porém, surgiam de cinco a seis mil garimpeiros que se punham a escavar a catra, um buraco descomunal que só depois de atingir cinco ou seis metros de profundidade deixava à vista os cristais de rocha. Se esses não fossem a pedra desejada, os homens partiam para cavar noutro lugar.

Não tardava muito para aparecerem mulheres no acampamento. Sua chegada era sempre tumultuada. Era um corre-corre danado e muita gente morria disputando espaços e companheiras.

Nesses povoados que se formavam rapidamente, a única autoridade era o revólver. O dono do melhor revólver virava o cabra mais respeitado.

A vida no garimpo é sempre uma surpresa. A lida começa às sete horas da manhã, com o sujeito cavando buraco, arrastando pedras ou lavando na bateia e só termina quando a noite cai. Aí, o trabalhador vai para os botecos comer, beber cachaça e desentender-se por besteiras. O garimpeiro luta para achar diamantes ou ouro e luta para sobreviver.

 

CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES

 

Orlando Villas-Bôas: Não tínhamos outra opção a não ser contratar essa gente, mas o convívio com eles nos mostrou o lado bom desses trabalhadores. Em geral, eram contratados quatorze homens, escolhidos entre aqueles que manifestavam o desejo de abandonar o garimpo. O interessante é que muitos queriam juntar-se a nós, porque viam na expedição um meio de fuga e proteção.

Era gente leal e alegre. À noite, os violeiros cantavam e um baiano, contador de histórias, entretinha o pessoal. Ele contava as peripécias com tal dramaticidade que os companheiros se empolgavam a ponto de interferir no desenrolar dos acontecimentos narrados.

Uma de nossas maiores preocupações, entretanto, era prepará-los para entrar na área indígena onde todo o mundo andava nu. Para nosso espanto, porém, nunca tivemos problemas com os sertanejos. Nossa convivência foi sempre respeitosa e amigável. Quem causou dor de cabeça foram os intelectuais que por lá arribaram e se puseram a mexer com as índias.

 

ATAQUE DOS XAVANTES

 

Orlando Villas-Bôas: Durante a jornada, o abastecimento de comida era fundamental e ficava a meu cargo. Saíamos a cada dez dias mais ou menos para garantir que não faltasse arroz, feijão, farinha e rapadura. O caminho era uma picada que ia sendo aberta na mata. Muitas delas serviram de base para a construção de estradas grandes e bonitas.

É verdade que não foram raras as escaramuças dos índios que tivemos de enfrentar. Os xavantes não aceitaram nossa presença. Índios agressivos, já haviam atacado duas expedições e matado seus componentes.

Numa ocasião, voltávamos com a tropa carregando as compras quando fomos surpreendidos pela gritaria de um grupo de índios constituído por homens, mulheres, velhos e crianças que se aproximava. Cláudio teve a ideia de subir num cupim enorme para avaliar quantos eram. Para sua surpresa, do lado oposto aos gritos, folhas de palmeira que se movimentavam ondulantes serviam de camuflagem para índios que nos iriam atacar pelas costas. Deu alarme e os sertanejos se desorientaram. Ordenamos que levantassem os mosquetões e foi disparada uma rajada de tiros para o alto. Os índios arremessaram as palmas longe e fugiram todos. Daí em diante, mudaram de tática. Só atacavam se a pessoa estivesse sozinha. Por isso, nenhum trabalhador pôde sair mais desacompanhado.

Os xavantes são índios que vivem essencialmente nos campos e cerrados. Quando entramos na mata do rio Curuene, desapareceram para reaparecer quando dela saímos.

Aos poucos, porém, fomos percebendo que nos atacavam não porque estivessem bravos com a nossa presença. Temiam ser desalojados de suas terras e reagiam todas as vezes que erguíamos uma edificação qualquer. Daí em diante, antes de seguir viagem, desmanchávamos, por exemplo, o ranchinho que servira para guardar mercadorias e jogávamos pedaços de paus no campo de pouso para mostrar que ele não seria mais utilizado. Depois disso, continuaram nos vigiando, mas nunca mais nos ameaçaram.

 

BOCA RICA

 

Orlando Villas-Bôas: Aqueles sertanejos não conheciam futebol. Fomos nós que lhes ensinamos alguma coisa a respeito desse esporte, primeiro com uma bola de pano e depois com uma de borracha que ganhamos de presente. Dividíamos o grupo em dois times de sete jogadores cada. Era um jogo bruto. O alvo dos pontapés era mais as canelas dos adversários do que a bola.

Como ninguém conhecia as regras, cada um inventava sua maneira própria de jogar. Um deles, por exemplo, não tirava o facão nem o revólver da cintura: “Quando jogo truco, não tiro as armas da cinta, por que vou tirar agora?” E não havia argumento que o convencesse do contrário. Outro, o Boca Rica, prendia a bola sob o pé no meio do campo enquanto enrolava o cigarro, acendia e dava uma baforada. Só depois saía andando devagarinho, controlando a bola e ninguém ousava tomá-la porque temia sua reação.

Era um tipo pitoresco esse homem. Casmurro, sisudo, de poucas falas, tinha os dentes todos cobertos de ouro. Um dia, contou-nos sua história. Tinha vivido no sertão de Goiás, com o pai e um irmão. Certa feita, os vizinhos desfeitearam o velho. Os dois irmãos foram tirar satisfação e acabaram matando seis pessoas daquela família. Vieram os soldados. Três foram mortos e os outros bateram em retirada. Dias depois, dez soldados apareceram. Acabar com os dez era mais difícil. Os irmãos resolveram partir. Um foi para o garimpo de diamantes. Boca Rica preferiu garimpar ouro a fim de realizar um sonho que acalentava desde menino: cobrir com esse metal todos os dentes da boca. Teve sorte. Conseguiu a quantidade de material de que precisava e um dentista para fazer o serviço. Satisfeito com o resultado, de vez em quando mostrava a dentadura e perguntava: “Tá alumiando?”,- e ai de quem dissesse que não.

Boca Rica trabalhou conosco durante muito tempo sem criar encrenca. Foi, então, que apareceu em Xavantina, onde estávamos sediados, uma cabocla que era uma beleza, bonita como ela só. Sete filhos. Cada um de um pai diferente. O último era filho de Boca Rica.

Chamava-se Luzia e era muito risonha e extrovertida. Brincava com todo mundo, mas ninguém mexia com ela. Boca Rica estava sempre por perto, mal-humorado.

Um dia, apareceram por lá dois garimpeiros falantes pedindo para fazer umas comprinhas no entreposto de abastecimento que havia sido montado para atender os trabalhadores. Não tardou e Luzia entrou no armazém, arreliando com o balconista. Um dos estranhos colocou a mão sobre o ombro da moça no exato momento em que Boca Rica punha os pés no estabelecimento. O sertanejo não titubeou: puxou o facão e rasgou a barriga do forasteiro de cima a baixo. O companheiro, um sujeito baixinho e franzino, viu aquilo e caiu duro. Morreu de susto.
Luzia passou a mão nos filhos e sumiu. Boca Rica não foi atrás da cabocla porque a polícia, que eu tinha mandado chamar, logo estaria por perto e ele precisava se esconder. Não adiantou. Cinco soldados acabaram localizando o danado. Reagiu a tiros e matou dois. Esperou que os outros se manifestassem. Silêncio absoluto. Decidiu sair do esconderijo e foi baleado por um soldado que se mantivera em tocaia. Boca Rica caiu fingindo-se de morto. O sargento, para certificar-se de que ele tinha mesmo morrido, arrancou-lhe um dos olhos com a mira do mosquetão. Nenhuma reação por menor que fosse. Quando o sargento apontou a arma para a cabeça do sertanejo, a população do lugarejo pediu-lhe que deixasse o cadáver em paz.

Boca Rica não tinha morrido. Permaneceu imóvel até ter certeza de que a polícia se afastara. Depois levantou-se e foi para o hospital de Aragarças. Imagine a dor que deve ter sofrido calado! Por sorte, passei por lá num avião da FAB. Fui vê-lo e o encontrei em péssimo estado. Meti-o no avião e levei-o para São Paulo. Ficou seis meses internado no hospital da Faculdade Paulista de Medicina. Quando recebeu alta, fui buscá-lo. As enfermeiras deram graças a Deus porque ele já estava se tornando um pouco inconveniente demais. Todavia, antes de voltarmos para o Xingu, quis passar numa casa especializada em próteses oculares. Só sossegou quando achou um olho de vidro de cor semelhante ao que lhe havia sobrado no rosto.

Algum tempo depois, veio me dizer que precisava ir à Barra do Garça. “Olha, rapaz, se te pegam, eles te prendem.” Respondeu-me que nada lhe aconteceria se levasse uma carta dizendo que fazia parte da companhia. Assim foi feito. Boca Rica partiu e matou mais um naquela cidade.

Para azar dele, porém, tempos mais tarde precisamos de um carpinteiro. Quando o moço chegou e os dois se olharam, imediatamente se reconheceram. Era o irmão do homem que ele matara em Barra do Garça. O rapaz não hesitou. Pegou o revólver e deu um tiro à queima roupa no Boca Rica que não conseguiu reagir porque o revólver enganchara em seu cinturão. O rapaz deu o segundo tiro. Boca Rica cambaleou, dobrou os joelhos e caiu morto. Missão cumprida, o sujeitinho desapareceu.

Um mês depois fui procurado por um filho de Boca Rica. Veio com uma conversa estranha, disse que tinha urgência de falar com o assassino do pai. Tudo papo furado. Tinha mesmo era sede de vingança. Contei-lhe que ninguém nunca mais tinha visto o tal homem e que, se eu soubesse onde se metera, chamaria a polícia para prendê-lo. Assim era a vida naquelas bandas: uma sucessão interminável de mortes e vinganças!

 

INFERNO DE MOSQUITOS

 

Orlando Villas-Bôas: No verão, os mosquitos viravam uma praga insuportável. Na beira dos rios, era quase impossível comer qualquer coisa, porque entrava mais mosquito do que alimento quando se abria a boca. A solução era comer praticamente com a cabeça debaixo d’água. Certa vez, apareceu por lá um americano levando um equipamento que ele dizia ser sensacional: uma espécie de máscara com zíper que se abria na hora de levar o alimento à boca. Quando foi fazer a demonstração, porém, e puxou o zíper, foram tantos os insetos que entraram pela abertura que ele quase enlouqueceu.

 

Veja também: Leia entrevista sobre medicina dos viajantes

 

As noites, ali, se transformavam num verdadeiro inferno. A única coisa que ajudava a afugentar um pouco as nuvens densas que nos rodeavam era fazer um fumaceiro. Acontece que ninguém aguentava respirar por muito tempo no meio da fumaça e bastavam alguns passos de distância para que eles voltassem a atacar. No acampamento, havia mosqueteiros que poderiam ser usados para nos proteger enquanto dormíamos. Todavia, por relaxamento, porque ficava muito quente ou dava muito trabalho, ou porque alguns conseguiam entrar e presos lá dentro se refestelavam com nosso sangue, a proteção acabava sendo posta de lado.

E era pium, maruim, borrachudo, muriçoca – o transmissor da malária – e o carunchinho que não voa nem pica, mas caminha por nosso corpo e provoca uma coceira danada. Por sorte, com o tempo as picadas vão imunizando a gente. Vai-se criando uma certa resistência às picadas e a coceira parece diminuir.

No entanto, todos pegamos malária. Por quê? Porque o civilizado, por comodidade ou segurança, constrói as casas na beira do rio e o mosquito transmissor da doença só precisa de água para proliferar. Se elas fossem construídas no espigão, o risco seria menor. Nas aldeias indígenas, é raro encontrar muriçocas.

 

MALÁRIA: O TERROR DA MATA

 

Orlando Villas-Bôas: Existem três tipos diferentes de malária (a benigna, a maligna e a intermediária) e medicamentos específicos para cada um deles. É claro que a maligna é a mais perigosa. O sintoma mais evidente é um frio terrível. A pessoa não para de tremer. Sem tratamento, o acesso dura dias. Tira a fome, tira a sede, tira o ânimo. Quando desaparece, a fraqueza e o desânimo tomaram conta do indivíduo. Tive as duas malárias. Ao todo, 253 acessos. Até hoje, mesmo vivendo em São Paulo, tenho os dois remédios em casa, porque o plasmódio, que se localiza no baço, nunca é eliminado. Se houver uma queda de temperatura muito grande, por exemplo, o baço se contrai, joga o plasmódio na circulação e vem o acesso.

Além da malária, só vez ou outra pegávamos uma gripe. Doenças mais graves, não existiam por lá.

Quando a mortalidade infantil aumentou no Xingu, fui a São Paulo e pedi ajuda. A enfermeira Marina (com quem me casei depois) decidiu me acompanhar. Sua chegada mudou radicalmente aquele panorama triste: ficamos quatro anos sem um óbito infantil na região. A façanha foi até citada numa revista de saúde americana. O título do artigo era: “Xingu: quatro anos sem óbito infantil por causa da assistência à criança”.

 

TRANSMISSÃO DE DOENÇA AOS ÍNDIOS

 

Orlando Villas-Bôas: A preocupação de não transmitir doenças para os índios era muito grande. Para tanto, procurávamos mantê-los o maior tempo possível em suas aldeias. Quando chegavam pessoas de fora para visitá-los, a aproximação só era permitida se achássemos que estavam em perfeitas condições de saúde. Na última fase do nosso trabalho, felizmente, contávamos com a colaboração da Escola Paulista de Medicina. De certa forma, os índios já tinham adquirido certa resistência, existia bom estoque de medicamentos e havia sido feita uma seleção das ervas terapêuticas encontradas na mata.

Na verdade, enquanto lá estivemos, só entravam no Xingu pesquisadores credenciados por grandes universidades. Outros visitantes ficavam no posto, nunca iam às aldeias, mesmo porque a mais próxima ficava a dez quilômetros de onde estávamos sediados.

A curiosidade em conhecer o índio, sua maneira de viver e a organização tribal atraía muita gente dos Estados Unidos e da Europa. Por isso, valeu a pena estabelecer determinadas regras porque, assim, sofreram menos os índios e os visitantes civilizados. O rei Leopoldo da Bélgica, por exemplo, veio ao Brasil, conversou com o presidente da República e foi levado ao Xingu para ficar dois dias. Ficou 58. Só voltou com a presteza que fez quando recebeu uma carta da mulher furiosa com sua ausência.

 

INCIDENTE COM A RAINHA DA BAVÁRIA

 

Orlando Villas-Bôas: O caso aconteceu em Xavantina e não no Xingu durante a visita dos reis da Bavária. Criei uma arara que conviveu comigo durante muito tempo. Por onde eu andava, ela me seguia voando. Se eu levantasse o braço, ela descia e pousava no meu ombro. A ave tinha, porém, uma esquisitice: ninguém podia chegar perto de mim que ela avançava.

O primeiro a nos visitar foi o rei. Gostou tanto que mandou chamar a esposa. Na hora do jantar, fui buscá-la para conduzi-la ao refeitório. Tínhamos de atravessar um pátio com mais ou menos 80 metros. A arara nos acompanhava lá do alto. Levantei o braço e ela desceu. Sem que ninguém se desse conta tal a rapidez do movimento, do meu ombro saltou para o ombro da rainha e prendeu a sua orelha com o bico. As duas rolaram no chão. Foi sangue espalhado por todo o lado.

Eu havia treinado a arara para soltar a presa dando-lhe um tapa no bico. Foi o que tentei fazer, mas errei a mira e acertei a cara da rainha. A arara levou um susto e voou. A rainha levantou-se do chão indignada, foi para seu alojamento, fechou as malas, chamou o piloto e exigiu que ele a levasse embora apesar da noite que se aproximava.
Em Brasília, apresentou queixa de que tinha sido agredida no parque. Fui convocado pelo Itamarati para prestar declaração. “Senhor Villas-Bôas, temos uma queixa da Bavária dizendo que o senhor agrediu a rainha”. Contei-lhes exatamente o que havia se passado. Não tivera a mínima intenção de esbofetear sua majestade. Queria era acertar o bico da arara. Os embaixadores aceitaram minhas explicações sem dificuldade e mandaram que reassumisse o meu trabalho.

 

CONTATO COM OS ÍNDIOS CALAPALOS

 

Vivi perto dos índios durante 48 anos. Os primeiros contatos foram atribulados porque eles guardavam a velha impressão de que o civilizado era um inimigo em potencial o que, na maioria dos casos, era verdade. Só o fato de se concentrarem no coração do Brasil, porque tinham sido expulsos da faixa litorânea e de áreas do norte e do oeste, é prova suficiente de que eles não deixavam de ter um bocado de razão.

Não tínhamos experiência nenhuma em como estabelecer uma comunicação amistosa com eles. Nossa primeira medida foi controlar nossos trabalhadores que consideravam os índios seus inimigos para que não agissem com agressividade.

Quando terminamos a travessia da serra do Roncador, 480 km, e entramos no rio Curuene, deparamo-nos com uma barreira humana formada por mais de duzentos índios. Se tentávamos caminhar, eles nos miravam com suas flechas e nós recuávamos. Esse enfrentamento durou dois dias. No terceiro, porém, por volta do meio-dia, um índio enorme e corpulento fez um gesto para que nos aproximássemos. Temerosos, obedecemos. Os que estavam sob seu comando mantiveram-se afastados, mas continuavam nos observando. Ele repetiu o gesto. Cheguei mais perto e, sem saber que atitude tomar, dei-lhe um abraço. Ele retribuiu, abraçou o Cláudio e o Leonardo, nós nos confraternizamos e fomos levados para a aldeia.

Tratava-se de um índio calapalo, da língua caraíba. Nos dias que permanecemos nessa tribo, a esposa dele adoeceu. Temendo que responsabilizassem nossa presença pela enfermidade da moça e querendo ajudá-la, pedimos medicamentos pelo rádio. O remédio foi jogado por um avião da FAB. Era penicilina e a índia, que já estava sendo pintada para a cerimônia fúnebre, recuperou-se. A notícia correu e, graças a esse acontecimento, pudemos erguer nosso primeiro posto às margens do rio Curuene e estabelecer relações cordiais com todos os índios da língua caraíba.

 

TRIBOS MAIS HOSTIS

A experiência com os caraíbas não se repetiu com a maioria das outras tribos que encontramos. Na verdade, estabelecer contato com os índios não era objetivo da nossa expedição nem estávamos preparados para fazê-lo. Além disso, nossa retaguarda não dava muita importância ao fato. Por isso, tínhamos que jogar um pouco com a sorte e improvisar uma tática diferente em cada aldeia por onde passássemos.

A aproximação mais perigosa ocorreu com os índios beiços-de-pau da nação caiapó e da família linguística jê, chamados pelos jurunas de txucarramãe, porque não usavam arco e flecha (txucarra=arco; mãe=não). Caçavam com lança e porrete. Eram índios botocudos bastante belicosos e temidos. Quando os conhecemos, estavam em luta acesa com os jurunas que, num passado distante, tinham vindo dos Andes e se fixado no Xingu.

 

LIÇÃO PARA A SOCIEDADE CIVILIZADA

 

Durante a longa permanência entre os índios, a única contribuição que talvez lhes tenhamos dado, foi mostrar aos civilizados que o índio brasileiro não é um selvagem agressivo e destruidor. Nós trouxemos a notícia de que eles constituem uma sociedade tranquila, alegre. Ali, ninguém manda em ninguém. Ovelho é dono da história; o índio, dono da aldeia e a criança, dona do mundo. Nesse tempo todo em que vivemos perto deles, nunca assistimos a uma discussão, a uma desavença na aldeia ou a uma briga de marido e mulher. Se a criança faz alguma coisa que o pai desaprova, ele não a repreende. Apenas a tira de onde está e a leva para outro lugar. É admirável, também, o respeito que os pequenos têm pela natureza, valor que adquirem observando o comportamento dos mais velhos.

O chefe, ou cacique, é o líder cultural da aldeia. Ele goza de muitas prerrogativas, mas deve observar uma série de restrições: não pode falar alto, nem rir ou fazer gestos bruscos, por exemplo. Sua função não é impor regulamentos nem determinar tarefas, mas estabelecer uma ligação entre a comunidade e os pajés que se reúnem todas as tardes para conversar, fumar e deliberar sobre o bom andamento da tribo. O cacique não participa da conversa. Apenas ouve o que está sendo dito e na manhã seguinte, segurando o arco numa das mãos, dirige-se ao povo que se junta diante de sua maloca para escutar as recomendações dos pajés e, em seguida, colocá-lasem prática. Supostamente, os pajés nunca erram porque não têm outra preocupação além de ficar zelando pelo bem-estar da comunidade.

 

LAÇOS AFETIVOS

 

Orlando Villas-Bôas: As mães são extremamente carinhosas. As crianças índias não aprendem a engatinhar, porque saem do colo materno já podendo caminhar. A menina é criada sempre junto da mãe e o menino, assim que aprende a andar, passa a seguir os passos do pai, observando tudo o que ele faz e tentando imitá-lo. De certo modo, ele intui que um dia será um homem com obrigações dentro da aldeia.

Nunca ouvi um indiozinho dizer não para pai e mãe e nem os pais dizerem não para os filhos. Apesar dessa aparente falta de limites, a criança não desenvolve maus comportamentos, porque cresce copiando a conduta dos adultos.
As relações conjugais são serenas. Não há brigas entre marido e mulher. Se algum desentendimento surge, a queixa é levada para o pajé e o problema acaba sendo resolvido a contento. O homem pode ter até três mulheres. Se a primeira concordar, ele pode casar-se com a segunda e, se as duas estiverem de acordo, ele pode desposar a terceira. Elas, em geral, não se opõem, porque o trabalho da primeira esposa passa a ser realizado pelas outras companheiras. Ela não carrega mais água, não arruma mais a maloca nem se levanta para comer, porque é servida na rede. O marido, com um gesto, indica qual das outras duas deve armar a rede debaixo da rede dele. Essa fica responsável por manter o fogo aceso durante a noite toda, pois o índio é muito friorento. Fazer o fogo, entretanto, é função do homem. Ele pega uma haste de urucum e a fricciona num pedaço de pau até sair a primeira fumacinha sob o olhar atento do curumim que se põe a soprar e a colocar folhinhas secas para dar força à chama.

A convivência entre os índios é marcada por comportamentos bastante pitorescos. Um homem volta da pesca trazendo uma fieira de peixes. Quando entra no pátio da aldeia, se ouve alguém gritar, registra quem foi, porque na hora em que a comida estiver pronta, o primeiro pedaço será oferecido para o índio que gritou. Por isso, ele fica na espreita, escondido, e só corre para casa se não vê ninguém por perto. Sujeitos pouco precavidos, às vezes, têm que reservar quatro ou cinco porções para os companheiros que os viram passar com os peixes. E tudo é feito naturalmente, sorrindo, sem rixas nem desavenças. Pacíficos no interior da aldeia, eles se tornam agressivos quando veem ameaçada de ocupação uma área importante para sua tribo. A beligerância só se manifesta quando interesses territoriais estão em jogo.

É um mundo diferente, habitado por gente que respeita tradições que o homem civilizado custa a entender.

 

PENSAMENTO ABSTRATO, CRENÇAS E MITOS

 

Orlando Villas-Bôas: As coisas que os índios ouvem, veem e falam constituem quase que toda a essência de suas vidas. Eles não inventam, não criam, são incapazes de fazer um verso de improviso.

O pensamento abstrato e a elaboração de crenças e mitos fazem parte do universo dos pajés. Esses são capazes de transpor para a realidade seus sonhos e visões. Na roda de seus companheiros, contam essas experiências como se tivessem verdadeiramente acontecido e todos acreditam neles.

No período em vivemos próximos, ouvi muitas histórias fantásticas. Uma delas falava da lagoa Miararé que existia dentro da mata. Seu dono era uma entidade sobrenatural chamada Savuru. O único índio que a conhecia era Caucuman, que não contava para ninguém onde ela ficava, porque a crença era de que só um pajé muito alto teria a permissão para aproximar-se dela. Caucuman morreu antes de saber que seu filho Tacuman era esse pajé.
Um dia, caminhando pela mata, o rapaz encontrou a lagoa. Incerto de que se tratasse mesmo da lagoa encantada, consultou um amigo de seu pai que também sabia como chegar lá. Ele concordou em acompanhá-lo, mas avisou que não se aproximaria e que Tacuman não deveria pôr os pés na água, porque Savuru era muito ciumento. O jovem pajé não obedeceu. Colocou os pés, as mãos e acabou mergulhando naquelas águas.

A partir dessa data, Tacuman volta e meia desaparecia da aldeia e todos sabiam aonde ele tinha ido. Certa feita, porém, voltou assustado. Alguma coisa tinha agarrado seu pé e só o soltara porque ele clamara pelo criador de todas as coisas. Sabendo disso, ninguém mais teve a ousadia de querer banhar-se nas águas de Miararé.

A visão que o índio tem do sobrenatural é a de uma entidade que participa do seu dia a dia. Numa ocasião, porém, Cláudio e eu fomos surpreendidos pela capacidade de abstração de um índio da aldeia Camaiurá. O lugar estava vazio. Havia gente caçando, pescando, gente que tinha ido para a roça. Dali a pouco, aparece um índio sujo de limo e carvão que puxou conversa. “Lá é o céu”, disse ele. Respondi que já sabia. “Lá é a aldeia dos que morrem.” Repeti que já sabia. “Lá é o céu. No céu do céu ele está.” “Quem? O velho que sabe tudo?”, perguntei surpreso. Não, lá não tem ninguém, só tem sabedoria”, foi sua resposta.

 

TRABALHO DE CATEQUESE

 

Orlando Villas-Bôas: Sempre fomos contra as missões religiosas nas áreas indígenas. A intenção pode ser boa, mas os resultados são muito discutíveis. Quando a tônica do trabalho é salvar almas e pregar uma crença que o índio jamais terá condições de entender em profundidade, não vale a pena. A abordagem deve visar à mudança da opinião que eles fazem dos civilizados: homens maus que vivem em guerra.

O índio é uma criatura boníssima, que vive satisfeito dentro de sua comunidade e ninguém tem o direito de quebrar a harmonia interior dessas pessoas. Enquanto convivemos com eles, sempre reforçamos a ideia de que só sobreviveriam se preservassem seu jeito trabalhar, de conversar, de interagir uns com os outros, suas crenças, seus costumes, sua cultura, enfim. Não está certo querer enfiar em suas cabeças valores que não sejam pertinentes à sua visão de mundo.

E é isso que as missões fazem. Querem substituir a aldeia para onde vão os índios depois que morrem pelo céu dos católicos ou dos evangélicos. Os índios acreditam que têm três almas: a primeira tenta ir para o céu, mas os passarinhos comem no caminho; a segunda fica no corpo do morto e só a terceira, que é a alma boa e sã, alcança o céu onde se transforma em gente e passa a viver tranquila. Que outra verdade indiscutível se pode oferecer em troca dessa crença que os conforta?

Quando o Brasil foi descoberto, estima-se que havia cinco milhões de índios. Atualmente, existem aproximadamente trezentos mil. Como se pode deduzir com facilidade, eles pagaram um tributo muito alto por esse contato com uma sociedade mais forte. Eles nos deram um continente e nós continuamos porfiando por terras essenciais para a sua sobrevivência.

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