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Raízes sociais da violência | Artigo

torre de penitenciária cercada por arame farpado. veja as raízes sociais da violência
Publicado em 27/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Raízes sociais da violência urbana estão associadas a diversos fatores, da desigualdade econômica ao uso de drogas.

 

Concentração populacional e violência

 

Em 1962, John Calhoun publicou na revista “Scientific American” um estudo que ganhou os jornais diários e teve repercussão no meio científico. No artigo “Densidade populacional e patologia social”, o autor relatava um experimento sobre as consequências do aumento da população de ratos, numa gaiola com um comedor na parte central e outros distribuídos pelos cantos.

O aumento do número de animais na gaiola provocava sua aglomeração em volta do comedor central, embora houvesse espaço à vontade ao redor dos comedores laterais. Como cada rato queria para si a posição mais privilegiada no centro, começavam as disputas. Quanto maior a concentração de ratos, maior a violência das brigas: mordidas, ataques sexuais, mortes e canibalismo.

Veja também: Leia artigo sobre restrição do espaço e violência

Naqueles anos 1960, o experimento foi um prato cheio para os comportamentalistas (behavioristas) e o público em geral. Oferecia uma explicação simples para a epidemia de violência que a TV começava a mostrar nas grandes cidades: turbas enfurecidas, polícia, bombas de gás lacrimogêneo, saques e as gangues urbanas. Assim como os ratos se matavam por uma posição no meio da gaiola, os homens se agrediam no centro das cidades, concluíram todos.

Durante décadas, a imagem da “gaiola comportamental” de Calhoun contaminou o entendimento das causas da violência urbana: quanto maior a concentração de gente nos centros urbanos mais violência, tornou-se crença geral. Ninguém lembrou que, no centro de Tóquio apinhado de gente, uma senhora pode andar tranquila à meia-noite, e que São Paulo ou Los Angeles, cidades de grande extensão e densidade populacional muito menor, estão entre as cidades mais violentas do mundo. É o que dá extrapolar diretamente para o homem dados obtidos com animais. Apesar de mamíferos, os roedores não são primatas.

 

Aprendendo com os chimpanzés

 

Os primeiros abalos sofridos pela “gaiola comportamental” vieram da primatologia que começou a nascer nos anos 1970. Em 1971, B. Alexander e E. Roth, do Oregon Regional Primate Research Center, descreveram brigas ferozes e até mortais entre macacos japoneses, quando os animais previamente mantidos em cativeiro eram libertados num espaço 73 vezes maior.

Em 1982, dois holandeses, F. De Waal e K. Nieuwenhuijsen, publicaram um estudo fundamental com os chimpanzés mantidos na colônia de Arnhem. Nela, os chimpanzés ficavam soltos numa ilha durante o verão e eram recolhidos a uma clausura com calefação nos meses frios. O espaço nesse ambiente fechado ficava reduzido a apenas 5% daquele disponível nos meses quentes, na ilha. Depois de analisar os dados colhidos em centenas de horas de observação de campo, os autores concluíram que, fechados, os chipanzés pareciam mais irritados, às vezes, tensos, mas não abertamente agressivos.

Os machos dispostos a desafiar a hierarquia complexa das sociedades chimpanzés adotavam postura cautelosa no inverno: curvar-se diante do macho alfa (dominante) e agradar seu pelo. As diferenças eram acertadas nos meses quentes, na ilha: o número de conflitos agressivos dobrava.

O pavilhão 5 da Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru) alberga cerca de 1.600 presos. Vão para lá, os que têm problema de convivência com a massa carcerária: estupradores, justiceiros, delatores, craqueiros endividados e outros que infringiram a ética do crime. Feito sardinha em lata, cinco, seis e até doze homens dividem xadrezes com pouco mais de oito metros quadrados de área útil. É a maior concentração de presos da cadeia.

Nos últimos 2 anos, no pavilhão 5 houve apenas uma morte. Morreu muito mais gente nos pavilhões menos povoados. Quantas mortes teriam ocorrido nesses dois anos, caso esses mil e seiscentos homens estivessem em liberdade?

Entre os primatas, o aumento da densidade populacional não conduz necessariamente à violência desenfreada. Diante da redução do espaço físico, criamos leis mais fortes para controlar os impulsos individuais e impedir a barbárie. Tal estratégia de sobrevivência tem lógica evolucionista: descendemos de ancestrais que tiveram sucesso na defesa da integridade de seus grupos; os incapazes de fazê-lo não deixaram descendentes. Definitivamente, não somos como os ratos.

Não é fácil construir uma sociedade rica e igual, que eduque de forma adequada todas as crianças, diga não às drogas de uso compulsivo, encontre alternativas às cadeias, acabe com as armas e aplique justiça com isenção.

Como já dissemos, a análise que a sociedade costuma fazer da violência urbana é baseada em fatores emocionais, quase sempre gerados por um crime chocante, pela falta de segurança nas ruas do bairro, preconceito social ou discriminação. As conclusões dos estudos científicos não costumam ser levadas em conta na definição de políticas públicas. Nos últimos anos, foram desenvolvidos métodos analíticos mais precisos para avaliar a influência dos fatores econômicos, epidemiológicos e sociológicos associados às raízes sociais da violência urbana: pobreza, impunidade, acesso a armamento, narcotráfico, intolerância social, ruptura de laços familiares, imigração, corrupção de autoridades ou descrédito na Justiça.

A maior parte dessas pesquisas é conduzida nos Estados Unidos, talvez porque os europeus tenham estado menos preocupados com o problema, embora estudos feitos em vinte países da Europa por T. Moffitt, pesquisador do King’s College de Londres, deixem claro que a probabilidade de ser assaltado nesses países, não é diferente daquela encontrada nos Estados Unidos. A diferença não está no número, mas nas consequências dos assaltos: o índice de homicídios é mais alto entre os norte-americanos.

 

Principais causas sociais da violência

 

A revista “Science”, já citada muitas vezes, traz uma revisão que resume a produção científica americana no campo da violência nas cidades. Vamos usar alguns desses estudos na discussão das causas sociais mais relevantes da violência urbana:

1) Desigualdade econômica – Há muito se admite que a má distribuição de renda crie ambiente favorável à disseminação da violência urbana. De fato, a desigualdade parece funcionar como caldo de cultura para a disseminação do comportamento agressivo. Sociedades que vivem em estado de pobreza generalizada tendem a ser menos violentas do que aquelas em que há pequeno número de ricos e uma grande massa de pobres.

A diferença de poder aquisitivo, no entanto, não é causa única. A violência urbana é uma doença multifatorial. As diferenças sociais existentes em nosso país podem explicar por que ocorrem mais crimes no Brasil do que na Suécia, por exemplo. Não explica, porém, por que os índices de criminalidade suecos começaram a aumentar na mesma época que nas cidades brasileiras ou americanas. Não explica, também, as razões pelas quais a criminalidade dos grandes centros americanos vem caindo consistentemente de 1992 para cá, período em que a concentração de renda se agravou naquele país.

Além disso, a desigualdade não explica por que num bairro pobre, e até numa mesma família, somente alguns se desviam para o crime, enquanto os demais respeitam as regras de convivência social.

2) Uso de armas – A alta concentração de armamento em certas áreas da cidade cria, segundo J. Fagan, da Universidade de Colúmbia, uma “ecologia do perigo”. Depois de entrevistar 400 jovens nos bairros mais perigosos de Nova York, o pesquisador constatou que a violência é realmente contagiosa. No período de 1985 a 1995, o uso de revólveres nessas comunidades se disseminou como doença transmissível. Jovens desarmados sentiam-se inseguros e acreditavam que, se carregassem uma arma, imporiam mais respeito aos adversários. No mundo do crime, as armas são o poder.

Como os que vivem do crime precisam dispor de armas competitivas em relação às da polícia e de quadrilhas rivais, instala-se nas cidades uma corrida por armamentos sem fim, responsável pelos ferimentos mais letais que os plantonistas de hoje enfrentam nos hospitais da periferia de São Paulo, em Washington ou Nova York.

3) Crack – O crack entrou em Los Angeles em 1984 e espalhou-se pelas cidades americanas. Em diversas delas, o número de crimes começou a aumentar já no primeiro ano depois da entrada da droga. A. Blumstein, diretor do National Consortium on Violence Research, atribui esse aumento a um fenômeno aparentemente paradoxal: a guerra às drogas.

Segundo o criminologista, a prisão dos líderes mais velhos do tráfico provocou a chegada dos mais jovens ao comando, e “os jovens não estão entre os melhores solucionadores de conflito – sempre brigam”.

Em 1992, tive a oportunidade de presenciar a entrada do crack na Casa de Detenção. Até então, cocaína só era comercializada em pó para injeção endovenosa ou aspiração nasal. O crack, preparação impura obtida a partir da pasta de cocaína, apresentava a vantagem de ser fumado em cachimbo (o que, em tempos de aids  e hepatite, não era pouco) e de custar muito menos, varreu a cocaína injetável do mapa.

Como consequência, a cocaína que era distribuída por um pequeno grupo de traficantes mais velhos, com poder aquisitivo suficiente para comprá-la, teve o consumo bastante reduzido. Enquanto isso, crescia assustadoramente o número de jovens inexperientes que se engajavam no comércio barato do crack. A democratização do uso aumentou a demanda de traficantes, pulverizou o comando, quebrou a ordem interna da cadeia e resultou em aumento de agressões graves e assassinatos.

Para ilustrar a complexidade desse tema, há muitos autores que estão de acordo com o ponto de vista acima: a prisão dos traficantes mais velhos, experientes solucionadores de conflitos, não tem impacto significante na redução da violência e pode até aumentá-la. Os jovens levados a ocupar as posições vagas tendem a resolver disputas com mais agressividade.

Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre violência epidêmica

4) Quebra dos laços familiares – No mundo todo cresce o número de filhos criados sem apoio paterno. São crianças concebidas por mães solteiras ou mulheres abandonadas por seus companheiros. No Brasil, o problema da gravidez na adolescência é especialmente grave nas áreas mais pobres: nas regiões norte e nordeste, de cada três partos uma das mães está entre 10 e 19 anos. Mesmo no sul e no sudeste, o número de parturientes nessa faixa etária é muito alto: cerca de 25%. Os estudos mostram que os filhos dessas jovens apresentam maior probabilidade de serem abandonados, mal cuidados e sofrer espancamento doméstico. O nascimento dessas crianças sobrecarrega a mãe, provoca abandono dos estudos, dificuldade de conseguir emprego e reduz o poder aquisitivo da família materna, obrigada a manter a criança.

Além disso, é bem provável que aquelas crianças nascidas com maior vulnerabilidade a desenvolver comportamentos agressivos, criadas por mães despreparadas para educá-las com coerência, possam tornar-se emocionalmente reativas e impulsivas, condições de alto risco para a violência.

5) Encarceramento – Muitos dos programas adotados no mundo todo e em nossas Febems para controlar a agressividade juvenil, podem ser piores do que simplesmente inúteis. O agrupamento de jovens de periculosidade variável não acalma os mais agressivos: serve de escola para os ingênuos. Todos parecem estar de acordo com o fato de que nossas cadeias funcionam como universidades do crime, mas é importante saber que diversos estudos confirmam essa impressão.

T. Dishion, do Oregon Social Learning Center, acompanhou um grupo de 200 adolescentes por um período de 5 anos. Os meninos que não fumavam cigarro, maconha e não bebiam álcool antes dos 14 anos, mas ficaram amigos de outros que consumiam essas drogas, tornaram-se usuários dois anos mais tarde, de forma estatisticamente previsível. O autor concluiu: “é um erro terrível alojar jovens delinquentes no mesmo lugar”. Uma fruta estragada parece mesmo contaminar o cesto inteiro, como diziam nossos avós.

Em 1990, P. Chamberlain e seu grupo, do mesmo centro de Oregon, conduziram um estudo com jovens delinqüentes de 13 a 14 anos. Ao acaso, os meninos foram distribuídos para cumprir pena em dois locais: albergados em instituições ou colocados individualmente em casas de família que recebiam ajuda financeira para mantê-los. Enquanto 57,8% dos meninos institucionalizados fugiram, apenas 30,5% dos que ficaram com as famílias o fizeram. Um ano depois de serem postos em liberdade, os que ficaram em casas de família tinham passado 60% a menos de dias na cadeia. O custo de manutenção dos jovens em prisões foi cerca de dez vezes maior.

6) Índices de encarceramento – No calor da emoção que esse tema provoca, a sociedade chega a defender posições antagônicas: muitos acham que se todos os delinquentes fossem para a prisão (ou fuzilados, como preferem alguns) a paz voltaria às ruas. Ao contrário, há quem diga que nossas cadeias são centros de pós-graduação e que a sociedade ganharia mais construindo escolas do que novos presídios.

A verdade é que os índices de encarceramento guardam relação com o número de crimes. R. Rosenfeld, da Universidade de Missouri, estudou os índices de homicídios nas áreas mais perigosas de Saint Louis e Chicago. Para cada aumento de 10% na população carcerária, concluiu que havia queda de 15% a 20% nos homicídios.

Outros pesquisadores obtiveram resultados bem mais discretos. O economista S. Levitt, da Universidade de Chicago, estudou as consequências da pressão que um movimento de defesa dos direitos civis exerceu sobre o judiciário americano, nos anos 1980. Por causa desse movimento, em alguns estados americanos os juízes decidiram cortar o número de prisioneiros, enquanto em outros a população de presos continuou a crescer. Levitt concluiu que uma queda relativa a 10% da massa carcerária, provocava aumento de 4% na criminalidade.

Para ilustrar novamente a complexidade de temas como esse, o criminologista R. Rosenfeld, citado há pouco, recomenda cuidado ao considerar esses dados. O encarceramento não deve ser visto como panacéia para o crime violento, diz ele na “Science”. E, continua, a curto-prazo a prisão tem um “efeito incapacitador”, impedindo momentaneamente o prisioneiro de praticar novos crimes nas ruas. A longo-prazo, entretanto, índices altos de encarceramento podem aumentar os índices de homicídios. Apesar da grande dificuldade em encontrar alternativas ao modelo prisional clássico, é preciso ter claro que o encarceramento em massa é um experimento de consequências mal conhecidas, com potencialidade para fortalecer o crime: empobrece e desorganiza famílias, desagrega vínculos sociais, expõe o presidiário ao contágio com a violência das cadeias e dificulta sua inclusão posterior no mercado de trabalho.

7) O caso americano – Comparativamente, as cidades americanas eram seguras nos anos 1950. A partir de 1960, porém, o gráfico da violência urbana entrou em ascendência contínua: em 1960, ocorriam cinco homicídios em cada 100 mil habitantes; em 1990, esse número havia dobrado.

Graças à profunda reorganização que as polícias das grandes cidades americanas sofreram nos últimos anos, com ênfase especial no combate à corrupção e em programas do tipo “tolerância zero”, o número de prisões quintuplicou nos últimos 30 anos: em 1960, havia cerca de 100 americanos presos em cada 100 mil habitantes; em 1990, quase 500.

Curiosamente, os crimes violentos que aumentaram sem parar desde a década de 1960, em 1992 e 1993, começaram a diminuir de forma significante no país inteiro, e permanecem em queda até hoje. Muitos interpretam essa queda como resultado da maior eficiência policial, outros atribuem-na às menores taxas de desemprego resultantes do desempenho favorável da economia americana nos últimos anos.

 

Hipótese surpreendente

 

Apesar das especulações, ninguém consegue explicar o acontecido. Se os aprisionamentos justificassem a queda nas taxas de violência criminosa, por que apenas em 1992 elas começaram a cair, se os índices de encarceramento aumentaram sem parar desde 1960, enquanto a violência seguiu sua escalada contínua?

Da mesma forma, se a redução do desemprego fosse a justificativa, por que só a partir de 1992 esse efeito seria detectável, se os Estados Unidos viveram diversas fases de prosperidade nos últimos 30 anos, enquanto a criminalidade crescia sem parar?

Para ilustrar, pela terceira vez, a complexidade desses temas, vamos citar a conclusão a que chegaram dois pesquisadores da Universidade de Stanford, He e John Donohue, depois de análise criteriosa dos dados referentes à progressão da violência americana, a partir de 1970. Segundo eles, a principal explicação para a queda da criminalidade ocorrida depois de 1992 a esta data, não foi a prosperidade econômica ou o trabalho policial: foi consequência da liberação do aborto nos anos 1970.

Os dados demográficos mostraram aos pesquisadores que as mulheres que praticam abortos são em sua maioria jovens e pobres, subpopulações cujos filhos enfrentarão condições sociais de alto risco para a violência. Sem a emenda que liberou o aborto em 1973, maior a probabilidade de mais adolescentes violentos completarem 18 anos em 1991. Sem eles, teria sido possível a redução da criminalidade descrita a partir de 1992.

O trabalho de He e John Donohue despertou fortes reações emocionais na comunidade acadêmica. O citado diretor do National Consortium on Violence Research, A. Blumstein, resumiu essas reações da seguinte maneira, para a revista “Science”: “É preciso grande habilidade para escrever um trabalho que enfureça ao mesmo tempo a direita e a esquerda. Os autores conseguiram fazê-lo de forma brilhante”. Pelo exposto, fica claro que nem todos os fatores que afetam a criminalidade podem ser alterados a curto prazo. Não é fácil construir uma sociedade rica e igual, que eduque de forma adequada todas as crianças, diga não às drogas de uso compulsivo, encontre alternativas às cadeias, acabe com as armas e aplique justiça com isenção. Como ainda conviveremos por muito tempo com a violência urbana, é preciso interpretá-la de forma menos emocional. Não há soluções mágicas para bloquear os fatores biológicos e sociais que aumentam a probabilidade de um indivíduo resolver seus conflitos pessoais por meio de métodos violentos. A violência urbana deve ser entendida como doença de causa multifatorial, contagiosa, com aspectos biológicos e sociais que precisam ser estudados cientificamente para podermos desenvolver estratégias seguras de prevenção e tratamento.

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