Se a sociedade brasileira conseguiu dar um exemplo humanitário inigualável no campo do combate a epidemia de aids, foi por meio de inovações técnicas e de seriedade administrativa.
Em 1981, quando foram detectados os primeiros cinco casos de homossexuais de classe média alta com aids na Universidade da Califórnia, ninguém poderia imaginar que estava emergindo uma das epidemias mais devastadoras da história da humanidade.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), já morreram 21,8 milhões de pessoas por causa da doença e há 36,1 milhões de portadores do vírus espalhados pelo mundo. Cerca de 90% destes vivem em lugares pobres.
A epidemia colocou vários países da África Central em estado de calamidade pública: em muitas regiões, de 20% a 30% da população está infectada.
Com base nesses dados, o Conselho de Segurança da ONU começou a trabalhar com a possibilidade de que, ao devastar a população de adultos jovens de um país, a epidemia represente uma ameaça à segurança mundial. É a primeira vez que uma doença recebe esse tipo de atenção por parte de um órgão de tal importância.
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Em São Paulo, epicentro da epidemia brasileira, tratei dos primeiros casos de aids. Nada mais frustrante. Os doentes passavam anos sem apresentar sintomas e sem suspeitar da companhia do vírus até surgirem as infecções de repetição. Quando escapavam do primeiro ataque oportunista, vinha o segundo, depois o terceiro e o quarto, numa sucessão mortal.
Em 1987, foi aprovado o AZT, a primeira droga com atividade contra o vírus. Embora os estudos mostrassem que o AZT prolongava a sobrevida dos doentes tratados na fase de aids já instalada, os benefícios do tratamento eram, na clínica, pouco convincentes.
No final de 1995, surgiram no mercado os inibidores de protease e um novo paradigma de tratamento: a associação de drogas. Foi uma revolução: nem o mais otimista de nós sonhava que a doença se tornasse controlável em tão pouco tempo.
O Brasil adotou uma política de tratamento da doença que privilegiou o acesso gratuito à medicação antiviral. Com a receita médica na mão, o doente vai ao posto e retira os remédios prescritos com um mínimo de burocracia. O tempo demonstrou o acerto da medida: o número de internações hospitalares diminuiu, a mortalidade despencou e, provavelmente, houve queda nos índices de transmissão da doença.
Hoje, a comunidade científica internacional e a OMS reconhecem o programa brasileiro de tratamento como o mais avançado do mundo, um modelo para os países em desenvolvimento. O livre acesso à medicação fez desaparecer da imprensa e do convívio social os doentes com o rosto encovado e manchas na pele, a imagem da aids em fase avançada. Paradoxalmente, porém, o controle das manifestações da doença afrouxou as precauções necessárias para impedir a disseminação do vírus. Encantados pelo pensamento mágico, agimos como se a epidemia brasileira estivesse controlada e o HIV pudesse ser esquecido.
É ilustrativo o caso dos homossexuais mais jovens. Há dez ou quinze anos, nas grandes cidades brasileiras, era difícil encontrar um homem homossexual que não tivesse perdido um amigo com aids. O sofrimento da perda era uma advertência inesquecível para a necessidade do uso de preservativos e da redução do número de parceiros sexuais, as duas medidas preventivas clássicas. Como consequência, as comunidades homossexuais responderam muito mais prontamente do que os heterossexuais na adoção de estilos de vida compatíveis com as práticas de sexo seguro.
Muitos dos homossexuais que iniciam a vida sexual nos dias de hoje, entretanto, não viveram os dramas da geração anterior e não veem a necessidade de adotar as mesmas práticas. Da mesma forma, agem milhões de adolescentes heterossexuais.
É insensato esquecer que, apesar dos avanços no tratamento, a infecção pelo HIV permanece incurável e não existe vacina para preveni-la. Conter a disseminação do vírus é compromisso inadiável com as futuras gerações de brasileiros, nelas incluídos nossos filhos e netos. Como a aids vem sempre de quem menos a gente espera, é preciso convencer os que mantêm vida sexual ativa da obrigatoriedade da prática de sexo seguro através dos meios de comunicação de massa, da escola e da conversa franca em casa.
De pouca serventia será a conscientização, no entanto, se o acesso ao preservativo não for universal. Sem medidas mais agressivas para aumentar a produção e fazer a camisinha chegar às mãos do usuário, nossa política de combate à aids ficará restrita a investir somas cada vez mais astronômicas para tratar dos que contraíram o vírus. Sem prevenir, só resta “correr atrás do prejuízo”, como diz o povo.
Se a sociedade brasileira conseguiu dar um exemplo humanitário inigualável no campo do tratamento da aids, foi por meio de inovações técnicas e de seriedade administrativa. Por que não fazer o mesmo na área de prevenção? Por que não ousarmos espalhar preservativos pelo país inteiro? Além da educação, essa é a única estratégia preventiva de eficácia demonstrada em todos os estudos realizados.