A epidermólise bolhosa é uma doença rara e genética que causa a formação de bolhas na pele e nas mucosas e não é contagiosa. Entenda.
A epidermólise bolhosa (EB) é um conjunto de doenças de pele genéticas e hereditárias raras que provocam bolhas na pele, especialmente nas áreas de maior atrito, e nas mucosas. As lesões profundas podem causar cicatrizes semelhantes às de queimaduras. Estima-se que cerca de 500 mil pessoas em todo o mundo tenham a doença, que não tem cura e não é transmissível.
Existem mais de 30 tipos de epidermólise bolhosa, mas os principais, de acordo com o Ministério da Saúde, são:
- Epidermólise bolhosa simples (EBS): causa formação de bolhas superficiais que não deixam cicatrizes. O surgimento de bolhas é reduzido com a idade;
- Epidermólise bolhosa juncional (EBS): provoca bolhas profundas, que atingem a maior parte do corpo e podem levar à morte no primeiro ano de vida. Quando as complicações são controladas, a condição costuma melhorar com a idade;
- Epidermólise bolhosa distrófica (EBD): também causa bolhas profundas, que se formam entre a derme e a epiderme, resultando em cicatrizes e, em muitos casos, perda da função do membro. É o tipo que mais provoca sequelas;
- Síndrome de Kindler: esse tipo é uma mistura dos tipos anteriores e também causa bolhas entre a derme e a epiderme, além de sintomas como sensibilidade ao sol, atrofia da pele e inflamação no intestino.
“As epidermólises bolhosas têm como característica a extrema fragilidade da pele e das mucosas. Por isso, pessoas com EB são conhecidas como ‘pele de asa de borboleta’, ou ‘pele de cristal’. O símbolo dessas pessoas são as borboletas. Essa fragilidade extrema torna a pele e mucosas vulneráveis à formação de bolhas e lesões após traumas mínimos, como pressão, fricção, tração e também a agentes físicos, como calor e radiações”, explica Samuel Henrique Mandelbaum, dermatologista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), chefe do Serviço de Dermatologia da Santa Casa de São José dos Campos e coordenador da ONG Dermacamp.
Causas, sintomas e complicações da EB
“As EB são condições genéticas que vão afetar as fibras de colágeno que garantem a adesão das diversas camadas da pele. As alterações nos genes podem ocorrer por fatores ambientais, doenças, medicamentos, entre outros. No caso da EB essas alterações nos genes podem ser transmitidas de forma dominante, quando basta que um dos genes esteja alterado, ou de forma recessiva, quando é necessário o encontro de dois genes alterados. As formas recessivas da EB são geralmente mais severas e com maior risco de complicações e sequelas”, esclarece o especialista.
Os sintomas podem variar conforme o tipo e intensidade da doença. Eles podem incluir:
- Bolhas frágeis que se rompem com facilidade, formando lesões na pele e mucosas, causando a formação de feridas localizadas ou generalizadas;
- Dor, em especial, durante os cuidados de higiene e trocas de curativos;
- Dificuldade para deglutir e mastigar os alimentos;
- Comprometimentos nos dentes, mucosas, trato gastrointestinal e trato urinário;
- Alterações oculares, podendo ocorrer cegueira devido às lesões ou infecções;
- Dificuldade de cicatrização e cicatrizes rígidas e com sequelas que afetam os movimentos das mãos e dos pés, podendo comprometer a movimentação.
As bolhas e feridas recorrentes podem causar infecções, sangramentos, anemia, desnutrição e maior risco para carcinomas (câncer) na pele.
Além disso, podem ocorrer outras complicações, como feridas que não cicatrizam, se tornam complexas e estão associadas a infecções repetidas; fusão dos dedos por problemas de cicatrização (sindactilias), com perda de funções para uso das mãos; infecções sistêmicas e sepse, com alto risco de óbito; peso e estatura baixos; e comprometimentos da mobilidade.
“Outro aspecto importantíssimo são as sequelas emocionais, devido ao estigma e preconceito por desconhecimento da sociedade. Esse impacto emocional é muito forte e compromete a saúde mental das pessoas e sua qualidade de vida. Além do capacitismo, ou seja, serem tratadas como pessoas incapazes, por desconhecimento [da condição]”, destaca o médico.
Veja também: Fogo selvagem (pênfigo)
Como identificar a epidermólise bolhosa
O diagnóstico da epidermólise bolhosa é inicialmente clínico, através da avaliação clínica da pele e mucosa no período neonatal. “A confirmação laboratorial do diagnóstico e do tipo de EB é realizada por biópsia de pele e pelo mapeamento genético através de amostra de sangue ou saliva. Como estes exames são mais demorados, a suspeita clínica é primordial”, afirma o dr. Samuel.
Segundo o médico, o diagnóstico clínico inicial é muito importante para que sejam implementados protocolos corretos de cuidados de proteção de peles e mucosas dos recém-nascidos com a doença, com o objetivo de prevenir novas bolhas e lesões, infecções e complicações durante as manipulações ou uso de dispositivos de suporte à vida, como oxímetros, aspiração, incubadores, roupas e o próprio manuseio dos bebês.
Tratamento da epidermólise bolhosa
O tratamento das epidermólises bolhosas é multidisciplinar e pode, portanto, envolver uma série de profissionais de saúde, como neonatologistas, intensivistas, dermatologistas, pediatras, geneticistas, oftalmologistas, psicólogos, entre outros. A necessidade de especialistas pode variar de acordo com cada caso.
“Os tratamentos para as EB sempre foram sintomáticos. Podem ser usadas coberturas para as feridas em curativos, de acordo com os estágios das lesões – secas, úmidas, abertas, mais profundas ou mais superficiais; são usados suplementos orais com proteínas e vitaminas; são realizadas cirurgias para dilatação do esôfago, que fica mais fechado pelas feridas; os casos de câncer de pele devem ser diagnosticados logo no início para aumentar as chances de cura pela cirurgia com a retirada das lesões; os dedos que ficam unidos pela cicatrização irregular podem passar por cirurgias ortopédicas”, explica.
O especialista conta que nos últimos meses as agências reguladoras de saúde dos Estados Unidos e da Europa autorizaram dois tratamentos específicos para epidermólise bolhosa: “Um deles é um oleogel extraído do bordo (árvore canadense), usado em pomada aplicada sobre as feridas crônicas, que diminuiu o tempo necessário para o fechamento”.
O outro tratamento, contudo, é realizado por engenharia genética. “É retirado um fragmento da pele do paciente com EB; das células deste pedacinho de pele, é retirado o fragmento do DNA que sofreu a mutação e colocado um pedacinho de DNA normal, tratado por engenharia genética. Isso é feito pelo vírus do herpes simples modificado. É realizada a cultura dessa pele modificada e aí então é produzido um creme que contém o DNA ‘normal’. Esse creme é aplicado em curativos sobre as feridas. O creme conseguiu produzir o fechamento de feridas”, esclarece.
Ambos os tratamentos têm custo alto e ainda não estão disponíveis no Brasil.
Cuidados com recém-nascidos
Nas epidermólises bolhosas de caráter genético – que são os tipos mencionados no começo da matéria – as manifestações surgem logo no nascimento ou nos primeiros dias após o nascimento. Por outro lado, na epidermólise bolhosa chamada adquirida as manifestações podem ocorrer mais tardiamente, por se tratar de uma condição autoimune.“ Importante ressaltar que uma forma de EB não se transforma em outra. Após nascer com EB simples, a pessoa terá sempre esse tipo. Da mesma forma, se for EB distrófica, assim permanecerá por toda vida”, explica o especialista.
Em recém-nascidos com a doença, os cuidados neonatais são fundamentais para garantir a sobrevida e prevenir o surgimento de novas bolhas, feridas, infecções e complicações. Assim, os cuidados incluem:
- Proteger a pele e as mucosas contra agressões provocadas por dispositivos como cateteres e oxímetro, não usar nenhum tipo de adesivo na pele para fixar sondas e cateteres e utilizar películas e cremes protetores e que aumentem a barreira de proteção;
- Não colocar o bebê em incubadora, optando por berço aquecido;
- Ter cuidados com a manipulação, evitando pressionar ou friccionar a pele do bebê;
- Remover elásticos de fraldas, roupas, e não utilizar clamps plásticos para umbigo, para evitar lesões;
- Evitar aspirar a nasofaringe (parte superior da faringe, situada na cavidade nasal) ou, caso necessário, utilizar materiais delicados e flexíveis à base de silicone;
- Cuidar das bolhas e lesões de forma correta, evitando que se rompam e se tornem feridas (proteger com coberturas de baixa aderência e que ajudem na cicatrização);
- Orientar a família e ensinar como cuidar do bebê em casa. Envolver a família nos cuidados ainda na maternidade, pois o impacto de se ter um bebê com EB é muito alto e demanda suporte emocional e educacional por parte dos profissionais de saúde;
- Estimular a amamentação, mesmo quando surgem lesões na boca, lábios e mucosas.
Sobre a questão da amamentação, o médico complementa: “É comum que ocorra abandono da amamentação tanto pelos profissionais da área neonatal, como pela mãe, por falta de orientação e cuidados especiais para prevenir e tratar as lesões que possam surgir. Existem muitas estratégias e materiais especiais que podem ser usados para ajudar a preservar a amamentação.”
Veja também: Primeiros cuidados com o bebê | Entrevista
Qualidade de vida dos pacientes
O impacto da epidermólise bolhosa na qualidade de vida dos pacientes depende de muitos fatores, conforme explica o dr. Samuel, como o tipo da doença, a oferta de políticas públicas de atenção em equipe multiprofissional nos municípios ou regiões, a inserção social e inclusão real desse público nas escolas, no mercado de trabalho e na sociedade como um todo.
Embora seja uma condição rara e grave, com o tratamento, acompanhamento e suporte adequados os pacientes podem fazer suas atividades do dia a dia e conseguir viver bem.
“A EB é uma condição complexa e heterogênea, requerendo por parte dos profissionais e dos gestores públicos um olhar integrado em relação às pessoas e não apenas à doença, pois com um adequado suporte e rede de apoio podem viver suas vidas de forma plena, exercendo sua cidadania, tornando-se profissionais que cuidam inclusive de outras pessoas com EB, como já temos diversos exemplos em nossa ONG Dermacamp. Hoje temos adultos com EB que são nutricionistas, fonoaudiólogos, enfermeiros, estudantes de medicina, advogados, engenheiros, arquitetos, profissionais de TI, incluídos como pessoas que têm EB, mas não estão aprisionados à doença”, finaliza.