A vacina contra a covid-19 deve ser oferecida de modo gratuito e equânime, por meio de uma campanha nacional coordenada pelo Ministério da Saúde.
Nada é mais urgente no mundo do que controlarmos a pandemia de covid-19, não apenas pelo nobre motivo de evitarmos mais mortes, mas também para que possamos retomar minimamente a normalidade e mitigar os efeitos nefastos da pandemia nas áreas da saúde, educação, economia e social. A forma mais efetiva de obtermos êxito nesse propósito, ninguém sensato questiona, é por meio da vacinação do maior número possível de pessoas.
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Para termos vacinas eficazes e seguras em tempo recorde, cientistas, indústria farmacêutica e governos do mundo todo uniram esforços e recursos. Assim, em poucos meses conseguimos desenvolver mais de uma vacina que poderão nos ajudar a enfrentar a pandemia, feito inédito que revela a necessidade de pensarmos a saúde também em nível global.
Se é fato que as notícias são promissoras, também sabemos que não haverá vacinas disponíveis para todos em 2021. As vacinas e os insumos necessários para sua aplicação são recursos escassos neste momento. Nenhum país do mundo estava preparado para enfrentar uma pandemia como a atual.
No Brasil, soma-se a essa situação a ineficiência e o descaso do governo federal, que demorou para manifestar interesse na compra das vacinas e insumos e ainda não estabeleceu uma data, mesmo que provisória, para seu início, ao contrário de mais de 40 países, como Estados Unidos, Reino Unido, Costa Rica e Chile, que já começaram a vacinação dos grupos prioritários.
“O Brasil perdeu o timing de uma negociação adequada, que incluísse várias vacinas. Neste momento, o que esperamos é uma coordenação nacional muito bem organizada, trabalhando em conjunto com as secretarias dos estados e municípios e com a comunidade acadêmica brasileira”, afirma Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Diante desse quadro, o setor privado tem manifestado interesse em adquirir vacinas que em teoria não estariam sob negociação do governo brasileiro. O raciocínio parece lógico: se o governo é inepto e não vai adquirir todas as vacinas potencialmente eficazes e seguras, por que, então, as clínicas privadas brasileiras não poderiam comprar e oferecer as vacinas que não serão adquiridas pelo Ministério da Saúde? Isso aumentaria o contingente de pessoas vacinadas, tornando o país mais próximo da imunidade comunitária, e ainda desoneraria o Estado, que não precisaria arcar com os custos da vacinação de quem pudesse pagar.
O argumento, embora aparentemente racional, ignora conhecimentos básicos acerca da dinâmica das imunizações e princípios fundamentais da saúde pública. “Falar em ampliação de oferta de vacina neste contexto como algo positivo é ignorância sobre a dinâmica de imunização ou simplesmente má-fé”, afirma Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Para começar, essas vacinas não são produtos disponíveis à venda, pois ainda não obtiveram registro definitivo nos órgão regulatórios, apenas autorização para uso emergencial. Muitas, inclusive, sequer terminaram seus estudos de fase 3, exigência para o registro definitivo.
A excepcionalidade e a urgência da pandemia, contudo, fizeram com que as agências regulatórias autorizassem o uso emergencial nos países que já iniciaram a vacinação. Mesmo assim, as pessoas vacinadas terão de ser acompanhadas de perto pelas autoridades sanitárias para verificar a ocorrência de eventuais efeitos adversos e também para que a ciência entenda o tempo de imunidade, entre outros fatores importantes.
Ethel Maciel, enfermeira, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santos (UFES), reforça a necessidade desse seguimento. “A coordenação nacional é importante para estabelecer grupos prioritários e, por meio de um sistema de informação nacional, usar um identificador para garantir que todos tomem o número de doses necessárias, sejam acompanhados quanto a efeitos adversos, entre outros. As clínicas privadas não têm sistemas integrados ao Ministério da Saúde para esse monitoramento.”
Não à toa, mesmo países que não possuem sistemas únicos de saúde, como os Estados Unidos, estão ofertando vacinas gratuitamente, de acordo com um plano nacional, e acompanhando os vacinados. Esse monitoramento, incluído nos chamados estudos de fase 4, é essencial para o registro definitivo dos produtos e sua posterior venda.
Há, também, a questão de justiça social e bem público que não pode ser deixada de lado em um país desigual como o Brasil, em que pessoas mais econômica e socialmente vulneráveis têm sido as principais vítimas da covid-19. O economista Flávio Comim, professor da IQS School of Management, em Barcelona, e professor afiliado da Universidade de Cambridge, afirma que, neste momento, a imunidade que dê funcionalidade à sociedade deve ser vista como bem público. “Se o estoque de vacinas é limitado, pode haver rivalidade entre o setor público e privado. Além disso, a provisão privada [da vacina] é injusta do ponto de vista distributivo, pois quem precisa pode ficar sem, e quem tem dinheiro, mesmo que não precise tanto, pode conseguir a vacina.”
O Brasil sabe vacinar. A excelência do PNI é reconhecida no mundo todo. Temos uma das maiores coberturas vacinais do mundo. A campanha da vacina da gripe, por exemplo, é responsável por imunizar cerca de 80 milhões de brasileiros em cerca de três meses todos os anos. “Não precisamos da ajuda privada para alcançar a cobertura vacinal”, afirma Renato Kfouri, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
“Os serviços privados coexistem com o PNI de forma saudável, oferecendo vacinas para os grupos não elegíveis no serviço público, nos momentos de normalidade, quando o SUS tem vacinas suficientes. Num cenário de emergência, não faz sentido ofertar vacina a quem tiver dinheiro, não é justo nem ético. Além disso, como iremos acompanhar o respeito pelos grupos prioritários, o controle das doses, a ocorrência de efeitos adversos?”, indaga Kfouri.
É importante lembrarmos que vacina não é tratamento e não segue a lógica individual. É estratégia de prevenção coletiva e só faz sentido se pensada coletivamente. Só estaremos de fato protegidos quando cerca de 80% das pessoas forem vacinadas. “O setor privado não está buscando uma parceria com o SUS. Se fosse assim, a proposta seria oferecer auxílio logístico para vacinar as pessoas de graça. Mas a proposta é vacinar pela lógica privada normal. Em condições normais, quando as vacinas essenciais já estão garantidas na rede pública, há menor conflito de interesse. Numa pandemia, mesmo que a rede privada siga a ordem dos grupos prioritários, estará vacinando um subgrupo: aqueles que podem pagar. Isso não é apenas imoral, mas vai também contra a lógica da Constituição, que reconhece a saúde como direito social e dever do Estado”, explica Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista e pesquisador da Universidade de Paris.
“Depois que o SUS conseguir ter todas as vacinas e insumos suficientes, depois que o plano de vacinação estiver em implementação, aí podemos conversar sobre a entrada do setor privado. Vacina para epidemias tem de ser um projeto de saúde pública coletiva, de preferência global”, argumenta Gabriela Lotta, professora de Políticas Públicas da Faculdade Getúlio Vargas (FGV).
É preciso cobrar o governo federal e as demais autoridades políticas competentes para que estabeleçam um plano eficiente e coordenado de vacinação, que inclua a compra das vacinas que tenham obtido autorização para uso emergencial, os insumos necessários e o estabelecimento dos grupos prioritários. Temos conhecimento e condições para isso. Falta vontade política, e a sociedade precisa pressionar o Ministério da Saúde.
A análise de questões complexas ganha com o olhar de profissionais de áreas diversas, que tragam perspectivas diferentes. No entanto, especialistas devem ter prioridade no debate porque conhecem, na prática e na teoria, suas áreas de atuação. Conversei com mais de uma dúzia de especialistas e li diversos estudos em saúde pública, imunização e epidemiologia para escrever esta coluna. O que defendo aqui é unanimidade entre eles: precisamos de uma campanha nacional de vacinação contra a covid-19, por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), inteiramente gratuita, com cobertura equânime e coordenada pelo Ministério da Saúde. É hora de escutá-los.