Universidades e faculdades também são responsáveis por abusos e violências cometidas por alunos de medicina. Leia na coluna de Mariana Varella.
O Brasil se chocou com os vídeos de alunos de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) exibindo a genitália para moças de outra faculdade que disputavam uma partida de vôlei em um campeonato universitário.
No entanto, todo mundo que participou de espaços universitários dos cursos de medicina conhece histórias de abusos e violências ocorridos nesses locais.
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Em 1998, três pessoas foram acusadas de atear fogo em um estudante da Faculdade de Medicina da PUC, em Sorocaba, após uma festa. O jovem precisou fazer várias cirurgias e permaneceu 24 dias internado.
Em fevereiro de 1999, o calouro de medicina Edison Tsung Chi Hsueh, de 22 anos, foi encontrado morto no fundo da piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, que pertence ao diretório acadêmico da Faculdade de Medicina da USP. O rapaz participava de uma festa na Atlética, quando foi jogado na piscina e se afogou.
A Atlética da USP, aliás, já sofreu várias denúncias de estupro e violências ocorridos em festas organizadas pela instituição.
Em 2010, calouros de medicina da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) foram agredidos durante um trote ocorrido em um sítio. Eles levaram tapas e cuspidas no rosto e foram obrigados a colocar um fígado podre de boi na cabeça, entre outras agressões.
Trotes e festas violentas acontecem em vários cursos de universidades e faculdades brasileiras há décadas. É uma forma de manifestação de poder e afirmação da hierarquia imposta por alunos veteranos aos novatos, conforme revelou a CPI do Trote, em 2015.
No entanto, chama a atenção o número de casos envolvendo alunos dos cursos de medicina, talvez por sabermos que esses jovens tratarão, no futuro, de pessoas no auge da vulnerabilidade humana.
Esse não é um mero detalhe. Embora esperemos conduta ética de todos os indivíduos, não há como negar que quem lida com pessoas em situação de vulnerabilidade, como professores e profissionais de saúde, devem ser ainda mais firmes ao assumirem o compromisso ético que essas profissões exigem.
É preocupante, sim, que futuros médicos se sintam à vontade para praticar violência física e contra minorias, mas isso é apenas a parte mais visível do problema, que começa antes da seleção vestibular.
Por ser um curso muito concorrido, o vestibular de medicina exige notas altas. Os alunos que as alcançam em geral são oriundos de escolas particulares caras, que puderam dedicar-se com afinco aos estudos. Jovens pobres e estudantes de escolas públicas são minoria nos cursos de medicina públicos e privados, que cobram mensalidades que variam entre 8 e 15 mil reais.
Os cursos de medicina são conhecidos por sua pouca diversidade. A maioria dos estudantes é branca, vinda das capitais ou das regiões mais ricas do país, formada em colégios particulares que aparentemente falharam com seu dever de formar alunos com noções de cidadania e ética..
O status que ainda envolve a profissão de médico reforça um ambiente corporativista em que não é incomum que colegas se protejam e acobertem comportamentos antiéticos.
Os alunos, depois de vencerem a etapa dura do vestibular, sentem-se por fim recompensados por fazerem parte de uma das profissões mais elitizadas do Brasil.
A hierarquia, a competição e a certeza de impunidade reforçadas no trote, nas festas e nos jogos universitários, todos regados a muito álcool e outras drogas, incentivam atos violentos.
Vejam bem, não se trata de moralismo. A época da faculdade é a fase em que os recém-adultos se veem pela primeira vez como indivíduos livres, sem o controle dos pais. É o momento em que exercem a sexualidade com liberdade, que usam drogas lícitas e ilícitas, que testam os limites do mundo adulto. Contudo, isso não lhes dá o direito de praticar violências ou preconceitos.
Punir os alunos é o caminho mais fácil. Expulsa-se meia dúzia de estudantes, lança-se uma carta dizendo que a faculdade repudia atos violentos e pronto. Até acontecer tudo de novo no ano seguinte. Ou na próxima festa.
As universidades e faculdades não podem continuar se isentando. É preciso que assumam o problema. São seus alunos, todos, os que cometem e os que sofrem violência.
Isso não significa, de forma nenhuma, que os estudantes não devam ser responsabilizados por seus atos, mas que a solução definitiva virá de medidas mais complexas.
Como agir, então? É necessário estabelecer medidas de incentivo para aumentar a diversidade entre seus alunos, incluir na grade curricular cursos que reforcem noções de cidadania, respeito e ética, envolver os próprios estudantes em programas que visem a redução da violência, trazer para as salas de aula discussões sobre os problemas sociais que afetam o país, cobrar comportamentos e condutas éticas durante todo o curso, entre outras ações apontadas por especialistas.
Embora aleguem que os casos não acontecem dentro dos seus espaços físicos, as universidades são responsáveis pela formação de seus alunos.
Que assumam sua incumbência.