O atendimento da mulher que busca realizar um aborto deve ser preocupação dos serviços de saúde. Leia na coluna de Mariana Varella.
Quem lê as notícias recentes sobre o Brasil fica com a impressão de que o país não gosta das mulheres. Essa é a única conclusão possível, também, para quem acompanha a área da saúde. Como entender a maneira como vítimas de violência sexual, muitas vezes meninas com menos de 14 anos, são tratadas? Como compreender que negamos o direito à assistência médica adequada a mulheres que não desejam uma gravidez, senão como sinal de ódio?
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Não fazemos isso com nenhum paciente, independentemente da doença, mesmo que seu quadro tenha sido provocado ou agravado por más decisões pessoais. Alguém aceitaria que um médico negasse tratamento a um paciente com câncer causado por anos de tabagismo, por exemplo, com a desculpa de que ele foi responsável pela doença? Seria desumano, certo?
No entanto, permitimos que uma mulher que não deseje seguir com uma gestação seja jogada à clandestinidade e tenha que se virar para encontrar uma solução, com medo de procurar aqueles que poderiam acolhê-la.
Quando recusamos atender uma mulher que por algum motivo queira ou precise interromper uma gravidez, estamos negando-lhe direitos fundamentais, como o direito à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, que estão no rol dos direitos humanos e permitem que todas as pessoas possam escolher se querem ter filhos, quantos desejam ter e qual o melhor momento para isso.
Quem tem condições financeiras e acesso a serviços privados consegue ser cuidada por um médico. Ainda que também esteja sujeita a violências que a clandestinidade legitima, ao menos ela não corre o risco de morrer, já que o abortamento orientado e conduzido por profissional de saúde é simples e seguro, principalmente nas primeiras semanas da gestação. Mulheres pobres e negras, por sua vez, não têm a mesma sorte.
A taxa de óbitos causados por abortamento entre mulheres brancas é de 3 a cada 100 mil nascidos vivos; entre negras, esse número sobre para 5. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5 a cada 100 mil nascidos vivos, quase o dobro da média geral de 4,5 (dados: IBGE).
O que ganhamos com a proibição do aborto, menos abortamentos? Já sabemos, por meio de pesquisas nacionais e internacionais, que a proibição não impede o procedimento: quem precisa e deseja fazê-lo encontra meios clandestinos para isso, mesmo que arrisque a vida. No entanto, perdemos muito tornando o procedimento ilegal e inseguro. Deixamos de formar equipes de saúde qualificadas para o atendimento das mulheres; desperdiçamos a oportunidade de orientá-las adequadamente sobre a prevenção de futuras gravidezes, reduzindo o número de gestações indesejadas; perdemos a chance de diagnosticar a gravidez no início, quando o procedimento é mais seguro, trazendo ainda mais sofrimento e riscos à mulher; e sentenciamos mulheres e meninas pobres que não podem realizar o procedimento a ter filhos sem que possam escolher o melhor momento para isso, o que significa prejuízo educacional, econômico e menos autonomia.
Além disso, sobrecarregamos os serviços de saúde, que acabam tendo gastos desnecessários com abortamentos mal feitos; deixamos de ter dados confiáveis para pesquisas na área que possam servir para orientar os serviços de saúde pública; impedimos mulheres que foram submetidas a violências que tenham acesso ao que já lhes é garantido por lei, visto que poucos serviços são qualificados para atendê-las; afastamos as mulheres dos serviços de saúde; e, ainda mais importante, consentimos com o fato de que milhares de mulheres sejam submetidas a destratos, negligência, insultos, humilhação, desamparo e risco de vida desnecessários.
Boa parte da América Latina, onde ocorrem 6,4 milhões de abortamentos todos os anos (OMS), parece ter compreendido tudo isso. Argentina, Uruguai, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Porto Rico, Cuba e México já permitem a interrupção voluntária da gravidez.
No Brasil, o Ministério da Saúde realizou nesta terça-feira (28/7) uma audiência pública para discutir um manual com medidas ainda mais restritivas que as atuais. Recentemente, o secretário nacional de Atenção Primária do Ministério da Saúde Raphael Câmara Medeiros afirmou que o MS não considera o aborto uma questão de saúde pública.
Não é um problema de saúde pública, secretário? O aborto inseguro não tem impacto em termos de anos potenciais de vida perdidos, não tem um alto índice de morbimortalidade, gerando alto custo com serviços de saúde e causando forte impacto na saúde da vítima, alguns dos critérios adotados pela literatura especializada sobre a definição de “problemas de saúde pública”?
Dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde em 2018 mostram que os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade. De 2008 a 2017, o SUS gastou quase 500 milhões de reais para tratar complicações relacionadas a abortamentos, 75% deles provocados. Em 2016, morreram 203 mulheres, uma a cada 2 dias, por complicações causadas por abortamento inseguro.
Levantamento feito pela Folha de São Paulo com dados de registros hospitalares do SUS revelou que em 2021 foram registradas 1.425 internações relacionadas a abortamentos espontâneos ou induzidos fora dos hospitais na faixa etária dos 10 aos 14 anos, quando o procedimento é permitido por lei (relação sexual com menor de 14 anos é considerado estupro no Brasil, independentemente do consentimento da vítima). Como comparação, segundo o mesmo levantamento, foram internados 1.565 pacientes com asma, um problema de reconhecida gravidade no país.
Contudo, se não conseguimos sequer garantir que meninas menores de 14 anos tenham acesso ao que lhes garante a lei, como pensar em ir além? Como avançar no que diz respeito aos direitos e à saúde das mulheres em um país que deixa claro, a cada dia que passa, que não se importa com elas?