Relacionamento abusivo não é só violência física | Entrementes

Drauzio Varella

Drauzio Varella é médico cancerologista e escritor. Foi um dos pioneiros no tratamento da aids no Brasil. Entre seus livros de maior sucesso estão Estação Carandiru, Por um Fio e O Médico Doente.

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Dr. Jairo Bouer explica as diferentes dimensões de um relacionamento abusivo. Assista ao primeiro vídeo sobre a saúde mental das mulheres.

 

Olá, pessoal, bem-vindos ao Entrementes. E neste mês de outubro, mês de atenção à saúde da mulher, a gente separou alguns temas de saúde mental que são muito importantes a gente tratar, a gente endereçar.

A gente começa hoje falando de relacionamentos abusivos, e a gente explica que relacionamentos abusivos não se resumem à violência física ou sexual, que é o que a maior parte das pessoas imagina. O relacionamento abusivo tem várias dimensões. Segundo a OMS, Organização Mundial da Saúde, só pra gente ter uma ideia: uma em cada três mulheres vai sofrer alguma forma de violência ao longo da sua vida. 

Então isso é muito importante, porque em geral quem pratica essa violência é alguém que vive, que é muito íntimo dessa mulher, e como muitas vezes essa violência não é só física ou só sexual, as pessoas têm dificuldade de identificar um relacionamento abusivo e de denunciar um relacionamento abusivo.

Eu separei pra vocês a Lei Maria da Penha de 2006, aqui do Brasil, que fala dessas diversas formas de violência. Ela ajuda a gente a identificar essas diversas dimensões de violência contra a mulher. Eu vou dar uma coladinha, pessoal, porque são muitas dimensões. Mas olha só.

Além da questão da violência física e da violência sexual – e violência sexual não se resume apenas a estupro e obrigar a mulher a fazer coisas que ela não deseja ou não quer, né? Obrigar a mulher a se casar, a abortar, a pressionar para que ela engravide, tudo isso pode se constituir também em violência sexual. 

Além disso, pessoal, a gente tem também a violência psicológica, que são todas essas formas de coação emocional. Ameaçar, constranger, humilhar, tudo isso é considerado violência psicológica. Nós temos também os casos de violência moral, que envolvem calúnia, difamação, injúria. 

E a gente tem também os casos de violência patrimonial: controlar o dinheiro da mulher, deixar de pagar pensão alimentícia, destruir documentos pessoais, furtar documentos, dinheiro da bolsa da mulher. Tudo isso constitui-se aí então nos casos de violência patrimonial.

Essas dimensões todas que a gente falou são dimensões que de alguma forma vão impactar a saúde mental, a saúde emocional, e muitas vezes o comportamento das mulheres. Então, é importante a gente entender as diversas dimensões desses relacionamentos abusivos, praticados, via de regra, por um parceiro íntimo dessas mulheres.

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Então, pessoal, muito cuidado com frases como “lugar de mulher é na cozinha”, “vai pilotar fogão”, “mulher não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo”, “mulher não tem nunca nenhum senso de direção”. Esse tipo de frase só reforça o preconceito, o estigma de uma sociedade machista e patriarcal.


E aí, quando a gente vai entender esse funcionamento, a gente percebe que isso começa desde muito cedo, com as crianças ouvindo ou repercutindo comentários dos pais, comentários de pessoas que elas encontram na rua. Então, pessoal, é muito importante que a gente possibilite uma desconstrução desses estereótipos e desses preconceitos. Isso começa tanto em casa como na escola. Muito importante a escola endereçar esses temas, também. 

É importante que a gente observe alguns sinais de alerta pra essa questão dos relacionamentos abusivos. Primeiro ponto: um comportamento controlador por parte do parceiro. Parceiro ciumento, parceiro que quer saber onde a mulher anda o tempo inteiro, tudo o que ela faz. Esse comportamento controlador pode ser um sinalizador já de um relacionamento abusivo.

Um rápido envolvimento amoroso. De alguma forma, quando a relação caminha muito rapidamente, e de uma hora pra outra a mulher tem que mudar sua rotina, o seu jeito de viver. Outro ponto importante são as expectativas irrealistas. “Você é uma mulher perfeita”, “você nunca falha”, seu desempenho tem que ser sempre o tempo inteiro 100%, em casa, na cama, na vida. Essas expectativas irrealistas do parceiro também podem sinalizar uma questão de um relacionamento abusivo.

Além disso, pessoal, uma hipersensibilidade, um parceiro que oscila muito. Uma montanha-russa emocional. De repente tá ótimo, de repente tá péssimo. De repente o que você fez é incrível, de repente o que você fez é péssimo. Essas oscilações também podem sinalizar aí alguma dificuldade de relacionamento. 

E por fim, pessoal, grosseria. O jeito de lidar, o ataque verbal muito frequente. Destemperos, descontroles, que ainda não são uma forma violência física, mas podem de alguma forma predizer ou indicar um risco maior de violência física. Então esses são sinais importantes de a gente prestar atenção.

Tem uma psicóloga americana muito bacana, ela se chama Lenore Walker. Ela identifica algumas fases de um relacionamento abusivo. Então, em linhas gerais e de uma forma muito simplificada, a gente tem uma fase, que é a fase inicial de escalonamento ou de aumento da tensão. Então são esses comportamentos de desentendimentos verbais, de controle de comportamento, de reações exageradas a atitudes ou situações. Então isso começa a sinalizar um crescimento ou aumento de tensão.

Uma segunda fase é o momento da violência física propriamente dita, quer dizer, muitas vezes a mulher é agredida, é vítima de violência sexual, violência física, dentro da sua própria casa. Num terceiro momento, há uma fase, uma espécie de reconciliação ou “lua de mel” ou arrependimento. O parceiro se mostra arrependido, promete que vai melhorar, que vai mudar. Ele traz muito remorso em relação ao que ele fez, e isso muitas vezes faz com que a mulher se coloque em uma posição de culpada. O mecanismo é tão sórdido que a mulher introjeta essa culpa, como se ela fosse culpada da violência do outro. E aí, nessa fase de remorso, há uma tentativa de resgate da relação. Depois desse último momento, dessa última fase, há o início de um novo ciclo e assim sucessivamente.

O que acontece é que esses ciclos vão ficando cada vez mais curtos: aumento de tensão, violência e remorso. Muitas vezes pode acontecer tudo no mesmo dia. Então esses ciclos vão se encurtando, a mulher vai se sentindo presa, vítima de uma situação muito complexa. E o parceiro muitas vezes tem uma atitude manipuladora, usa os filhos, usa seu poder econômico, usa essa sociedade machista e patriarcal que a gente tem pra justificar seus comportamentos, a introjeção da culpa que a gente falou há pouco, enfim. É muito difícil, muito complexo a mulher romper esse ciclo.

Pessoal, depois de tudo isso que a gente falou, é muito importante que a mulher fique atenta a todos esses sinais, atenta a esses ciclos, atenta a essas dimensões todas de um relacionamento abusivo, e que ela perceba, pare e busque ajuda. Ajuda pode começar no momento em que ela conversa com alguém, em que ela externa pra alguém as suas dificuldades, em que ela busca um grupo de apoio ou um grupo de ajuda. Isso é muito importante pra que ela consiga romper esse ciclo e muitas vezes sair desse relacionamento, que é um relacionamento que pode trazer riscos sim pra sua vida. É isso aí.

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