Experiências como as dos Médicos Sem Fronteiras demonstram que é possível combater a epidemia de aids com programas de baixo custo que atinjam as comunidades mais abandonadas.
No início dos anos 1990, a proporção de pessoas infectadas pelo HIV, no Brasil, era a mesma da existente na África do Sul. Hoje, a prevalência do vírus em nossa população adulta é de 0,5%, enquanto lá aumentou para cerca de 10%.
Provavelmente, a principal razão para esse contraste é que nós criamos um programa universal de distribuição de antivirais, enquanto eles demoraram para começar a tratar os conterrâneos.
Veja também: Episódio sobre a visita do dr. Drauzio a um campo de refugiados sírios no Líbano
Com a experiência, aprendemos que medicar HIV-positivos ainda saudáveis não só lhes traz benefícios, como reduz a velocidade de transmissão do vírus, conclusão a que os trabalhos científicos só chegaram nos últimos anos.
Esses conhecimentos estimularam cientistas e líderes políticos a propor uma estratégia mais ousada: tratar todos os HIV-positivos para acabar com a epidemia.
No ano 2000, a organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou um programa para levar os antivirais aos habitantes dos países mais pobres. Hoje, esse programa atinge 220 mil HIV-positivos em 23 países, a maioria dos quais na África.
A organização acaba de publicar na revista Science, uma avaliação das estratégias empregadas e das dificuldades operacionais para atender o maior número possível de pessoas, em áreas carentes de recursos e de serviços de saúde.
As principais barreiras para garantir acesso e conseguir aderência ao tratamento nesses locais são: a distância entre a moradia e as unidades de saúde, o tempo perdido nas salas de espera das clínicas, a impossibilidade de deixar o trabalho e de largar as crianças sozinhas.
Experiências como as dos Médicos Sem Fronteiras demonstram que é possível combater a epidemia de aids, com programas de baixo custo que atinjam as comunidades mais abandonadas.
Para enfrentá-las, o MSF procurou descentralizar o atendimento, para levar os serviços de saúde às áreas mais remotas. Em muitas localidades, a descentralização obrigou a deixar a prescrição de antivirais sob a responsabilidade de enfermeiras e outros profissionais de saúde, medida que demonstrou eficácia em estudos comparativos.
Hoje, os antivirais estão disponíveis em mais de 40% dos serviços de saúde de quatro países africanos, e em mais de 20% de oito países. Dez países autorizam enfermeiras treinadas a prescrever antivirais.
Entretanto, em quatro países com mais de 1% da população infectada, as unidades de saúde são inacessíveis a mais de 75% dos HIV-positivos. Seis países restringem aos médicos a prescrição dos antivirais, exigência que inviabiliza a descentralização e a integração com os serviços de pré-natal e de combate à tuberculose, epidemia que segue os passos da aids.
É o caso de Moçambique, em que a proibição é mantida apesar de 5% da população estarem infectados, e o da Guiné em que as enfermeiras podem prescrever, mas sob supervisão médica.
Para evitar viagens frequentes às unidades de saúde, em Uganda e Zimbabue são distribuídos comprimidos suficientes para dois meses. Em Moçambique, seis pacientes em cada grupo se alternam para avaliação médica semestral, ocasião em que recebem os antivirais para os seis meses seguintes.
A dificuldade de obtenção de recursos, no entanto, ameaça esses programas. Quando o suprimento de drogas se torna insuficiente, os pacientes passam a receber doses que mal dão para uma semana.
Para lidar com populações de migrantes, como a dos trabalhadores que se deslocam pelas fazendas da fronteira da África do Sul com o Zimbábue, o MSF criou unidades móveis e cartões de saúde. A dificuldade está em atrair imigrantes clandestinos com medo de serem deportados.
O desafio de tratar todos os HIV-positivos é enorme. Na Índia, República Centro-Africana, Congo e Miamar, os antivirais chegam a menos de um terço dos que precisam deles. A necessidade de mais fundos internacionais, de exames laboratoriais e de medicamentos mais baratos é urgente.
Esses obstáculos associados à falta de financiamento para medicar 7,6 milhões ou mais de HIV-positivos que não recebem tratamento, à evidência da necessidade de iniciar os antivirais mais precocemente, e à de assegurar a aderência a eles, passo vital para evitar a resistência do vírus, criam dificuldades que só serão superadas se houver um grande esforço internacional.
Experiências como as dos Médicos Sem Fronteiras demonstram que é possível combater a epidemia de aids, com programas de baixo custo que atinjam as comunidades mais abandonadas.