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Parque Ibirapuera – Outras Histórias #66

Entre a observação das árvores e pássaros do Parque Ibirapuera, dr. Drauzio conhece um jovem que foi do crime às corridas profissionais.
Publicado em 13/09/2022
Revisado em 29/11/2022

Entre a observação das árvores e pássaros do Parque Ibirapuera, dr. Drauzio conhece um jovem que foi do crime às corridas profissionais.

 

 

 

O Parque Ibirapuera, um dos maiores de São Paulo, foi inaugurado no quarto centenário da cidade e até hoje atrai corredores, andarilhos e ciclistas. Treinando para suas maratonas, o dr. Drauzio opta pela pista de pedregulhos, área tão frequentada por ele que as árvores e os pássaros já se tornaram familiares.

Em uma de suas visitas ao parque, um jovem pediu para correr ao seu lado. Corredor profissional, o talento pela velocidade surgiu em meio a suas várias passagens pela FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, atual Fundação CASA). Ouça neste episódio do Outras Histórias.

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Não pode ouvir agora? Acompanhe a transcrição a seguir:

Parque Ibirapuera é um texto que eu escrevi, que foi publicado no meu livro Correr, em que eu falo da minha experiência como corredor.

Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir Outras Histórias.

O Quarto Centenário de São Paulo foi comemorado em grande estilo em 1954. Não guardo lembrança das cerimônias oficiais. Nós nem tínhamos televisão em casa naquela época. Mas nunca mais esqueci da chuva de papel prateado que os aviõezinhos jogaram sobre a cidade e nem dos fogos de artifício na inauguração do Parque Ibirapuera.

O Ibirapuera é um dos maiores parques da cidade. Ocupa uma área de mais de 1,5 km2, alagadiça desde os tempos dos indígenas. Até que um funcionário da prefeitura, Manequinho Lopes, ali plantou eucaliptos australianos pra drenar o solo. Em 1927, ele fez isso, imagina. Passados quase cem anos, esses eucaliptos de casca grossa, marrom-escura, continuam espalhados pelo parque, altos, com troncos que um homem sozinho não abraça.

Corredores, andarilhos e ciclistas costumam completar o circuito no asfalto em volta dos lagos, o que eu também fazia até me afeiçoar à pista de pedregulhos que serpenteia num pequeno bosque. Já percorri tantas vezes aquele 1,5 km2 que conheço cada árvore. As tipuanas majestosas, que atapetam o chão de flores amarelas, miúdas; ipês; jacarandás mimosos, que dão flores roxas; palmeiras; uma pitangueira que na florada se veste de branco; espatódeas, com flores alaranjadas em formato de taça, além dos eucaliptos quase centenários do senhor Manuel Lopes de Oliveira Filho.

Espetáculo à parte é o dos sabiás-laranjeiras, pássaro símbolo da cidade de São Paulo. De junho a novembro, nem o mais madrugador dos frequentadores consegue antecipar-se a eles. Começam a cantar às três da manhã e não param mais. Um daqui, outro dali alternam as vozes com breves hiatos pra ganhar fôlego. Não o fazem por diletantismo, mas para impressionar as fêmeas: é época de acasalamento. Antes que o dia clareie, já é possível vê-los no chão à caça de insetos, saltitantes, atentos à aproximação dos gatos vadios que perambulam pelas cercanias. Sem o inimigo por perto, não os perturba a proximidade dos corredores. Mais confiados do que eles só o joão-de-barro, pássaro de cor da terra dos ninhos que constrói com a habilidade de engenheiros. Não parecem temer o homem, só se dão ao trabalho de sair da frente quando estamos a dois passos deles.

Pouco mais tarde, lá pelas sete, as maritacas se reúnem na copa das árvores mais altas numa gritaria infernal. Depois de um tempo, levantam voo para berrar em outras freguesias. Os gritos se afastam, mas não silenciam, apenas ficam mais distantes até que voltem pra mais perto de novo. Bem-te-vis de peito amarelo, rolinhas de andar chapliniano, sanhaços de asas azuis, coleirinhas, pombas-do-mato, andorinhas e suas circunvoluções, tico-ticos, beija-flores paralisados no ar e até canários-da-terra amarelos com asas cinzentas, ariscos, dão o ar da graça ao redor da pista.

Apaixonado que sou por passarinhos desde pequeno, o raiar do dia no meio deles me traz uma felicidade infantil, que ajuda a suportar o esforço das corridas mais longas. Como a trilha é cheia de curvas, muitos a evitam com medo de sobrecarregar os joelhos, temor que talvez explique por que é menos concorrida. Duas ou três semanas antes das maratonas, procuro fazer treinos que chegam a 36 km, correspondentes a 24 voltas completas, sem nunca ter sentido dor nos joelhos ou nas articulações coxofemorais.

Corro sozinho. Uma vez no inverno, comecei a correr com as luzes da pista ainda acesas. De repente, vi um vulto rápido no meio do bosque escuro que veio em minha direção. Era um rapaz miúdo, de cabelo curto e corpo de atleta profissional. “Posso correr do seu lado, doutor?” “Se você não se importar com a velocidade, fique à vontade”. “É que eu tava observando os seus defeitos. Por exemplo, relaxe esses ombros de cabide. Abaixe os braços que você não é boxeador. Abra e solte os dedos das mãos.” Dava ordens com tal autoridade que eu não ousei desobedecer.

Contou que havia perdido a mãe aos 12 anos. Foi morar com uma prima dela, casada com um brutamontes com quem tinha três filhos. Os dois cachorros da casa ocupavam posição mais elevada na hierarquia familiar. Ele diz: “Tinha que acordar às cinco da manhã pra começar o trabalho doméstico. Só parava às seis da tarde pra dar banho e levar os cachorros pra passear. Só podia comer depois de dar comida pra eles. Peguei bronca de cachorro até hoje. Bicho safado, puxa-saco de homem.”

Depois de um tapa na cara que levou do brutamontes, saiu com os cachorros pra passear, soltou-os na rua e pegou o trem pra Estação da Luz, lugar para onde sabia que tinha fugido um garoto da vizinhança, maltratado como ele. Perambulou pelas imediações da estação até encontrar um grupo de meninos de rua aglomerados junto ao prédio do Poupatempo da Avenida Ipiranga. No dia em que completou 16 anos, foi parar na antiga Febem, pela terceira vez, por azar.

Num arrastão, roubaram as bolsas das senhoras que desciam de um ônibus de turismo no Largo Santa Ifigênia no exato momento em que passava uma viatura da PM. O rapaz e os quatro amigos saíram correndo. Todos foram alcançados e presos, menos ele, que disparou na frente e só foi pego dois dias mais tarde porque um dos policiais que participaram da perseguição o reconheceu na rua.

Ele conta: “No caminho, ele me perguntou onde eu tinha aprendido a correr daquele jeito. Respondi que tinha sido na vida. Ele me disse que, em vez de ficar roubando, eu devia virar corredor. Aquilo ficou na minha mente.” Com a ajuda de um funcionário da antiga Febem, foi apresentado a um treinador da prefeitura do ginásio do Ibirapuera. “Hoje sou profissional. Correr pra mim foi questão de vida ou morte.”

Guardadas as devidas proporções, acho que pra mim também.

Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias. A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.

Veja também: Outras Histórias #31 | Maratona do Rio

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