Outras Histórias #53 | Colegial ateu

Quando Drauzio, que já se considerava ateu desde os 10 anos de idade, foi para um colégio de padres, passou por uma situação constrangedora.

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Publicado em: 24 de maio de 2022

Revisado em: 22 de junho de 2022

“Fiz sua matrícula no colégio dos padres”. A decisão do pai foi o começo de um grande choque para o jovem Drauzio Varella, que já se considerava ateu desde os 10 anos de idade.

 

 

 

“Fiz sua matrícula no colégio dos padres”, disse o pai enquanto tirava um bolo de fubá do forno. Para o jovem Drauzio, a decisão foi uma surpresa. Ele gostava do colégio onde estudava e estava animado em ir para o colegial, onde as salas eram mistas e ele poderia se aproximar de uma menina com a qual trocava olhares pelos corredores.

O pai queria lhe dar formação religiosa, mas Drauzio já se considerava ateu desde os 10 anos. Na nova escola, além das diferenças de crenças, havia ainda a diferença de costumes. Ao sair do vestiário pronto para se trocar em meio aos colegas, como fazia no antigo colégio, ele ouviu os gritos exasperados do Irmão José. Acompanhe a história neste episódio.

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“Fiz tua matrícula no colégio dos padres”, disse meu pai numa tarde de domingo, enquanto tirava um bolo de fubá do forno de casa. Fiquei pasmo.

Acabara de terminar o antigo ginasial no Liceu Pasteur, na Vila Mariana. Gostava do colégio, que tinha me ensinado o francês, gostava dos colegas de classe e do futebol no campo de terra. Além disso, ao contrário das classes do ginásio, as do colegial seriam mistas, oportunidade que eu teria pra me aproximar de uma menina de tranças e olhar luminoso que sorria pra mim ao passarmos pelo portão de entrada.

Não ousei perguntar por que não me consultara. Assuntos pertinentes à escola dos filhos eram decididos por ele sem considerar nossas opiniões. Apenas quis saber o que o levara a tomar atitude tão radical. “Você precisa de formação religiosa. Não estou pra ter filho ateu aos 14 anos.”

De fato, achei que já era ateu desde os dez anos, mesmo sem ter ideia do significado dessa palavra, idade em que assistia às aulas de catecismo, pré-requisito para a Primeira Comunhão. Na última aula, a professora disse que, ao recebermos a hóstia, deveríamos levá-la com a língua ao céu da boca para esperar que se dissolvesse e advertia: “Não mastiguem a hóstia, é o corpo de Cristo. Um menino no norte da França, que mordeu a hóstia, ficou com a boca cheia de sangue.”

Achei a história muito estranha, mas não tive coragem de testá-la na cerimônia da Primeira Comunhão porque meu pai tinha comprado um terninho de linho branco, que tive medo de sujar de sangue.

Um mês mais tarde um de meus tios fez bodas de prata. Antes da missa comemorativa, precisei inventar dois pecados para o padre na confissão, exigência pra poder comungar. Ajoelhado junto ao altar, recebi a comunhão e voltei para o meu lugar. Mordi a hóstia devagar, uma, duas, três vezes. Senti só o gosto de farinha. Disfarçadamente, levei o indicador à boca, não havia sinal de sangue, comecei a duvidar.

A transferência de uma escola leiga para a dos padres daquele tempo não ocorreu sem incidentes. A maioria dos alunos era de famílias de fazendeiros e comerciantes do interior, matriculados no regime de internato desde os dez anos, quando atingiam a idade mínima para cursar o antigo ginasial. Os alunos externos eram em número pequeno e eu, que vinha de fora, a minoria dessa minoria.

Em pouco tempo, no entanto, entendi que as regras de comportamento no Liceu Pasteur podiam se chocar com as prevalentes no novo colégio. Por exemplo, no Pasteur, quando terminavam as aulas de Educação Física, tomávamos banho nos chuveiros coletivos e nos trocávamos no mesmo vestiário.

Na primeira aula de Educação Física no colégio dos padres, prestei a maior atenção para ver como os demais faziam na hora do banho. De calção e camiseta, todos se dirigiam aos armários do vestiário, pegavam a toalha e caminhavam até os banheiros individuais, alinhados ao longo do corredor do pátio, de onde saíam enrolados na toalha de banho, com o calção e a camiseta nas mãos em direção ao vestiário. Fiz exatamente o mesmo. No vestiário, abri meu armário, guardei a roupa de ginástica, derrubei a toalha no chão pra pisar em cima e ia pegar a calça quando percebi que todos me olhavam, alguns disfarçavam o riso, outros faziam sinais. Então, notei a presença do Irmão José, coordenador do colegial, apelidado de Zé Pequeno, que atrás de mim começou a vociferar palavras que eu não conseguia entender. Fiquei ali de frente pra ele, com a nudez insegura dos 14 anos, paralisado. Esbaforido, vermelho como um pimentão, apoiado na ponta dos pés para compensar a baixa estatura, o religioso gritava tanto que espumava e cuspia. “Cubra essas vergonhas, cubra essas vergonhas”. Não sei quantas vezes precisou repetir a ordem até meu vizinho de armário jogar uma toalha salvadora em minha direção.

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