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O filho da costureira – Outras Histórias #68

 A morte nem sempre é uma tragédia. Em alguns casos, ela traz paz. Foi o caso de Seu Vitorino, o filho da costureira.
Publicado em 04/10/2022
Revisado em 29/11/2022

 A morte nem sempre é uma tragédia. Em alguns casos, ela traz paz. Foi o caso de Seu Vitorino, o filho da costureira.

 

 

 

Em seu livro Por um Fio (2004), Drauzio conta que a morte sempre costumou ser associada à desgraça. Durante sua infância no Brás, as famílias velavam o corpo dos falecidos em casa em ocasiões muito fúnebres e carregadas de tristeza. Mas, quando conheceu Seu Vitorino, a sua concepção mudou.

Seu Vitorino era filho de uma costureira e foi vitimado por um tumor no fígado. Do início do tratamento ao suspiro final, a esposa e as filhas estiveram sempre ao seu lado. Ouça neste episódio.

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Não pode ouvir agora? Acompanhe a transcrição a seguir:

Essa história faz parte do meu livro “Por um fio”.

Olá, eu sou Drauzio Varella e aqui você vai ouvir Outras Histórias.

A chegada da morte nem sempre tem o significado de desgraça. Não há quem discorde quando essa afirmativa é aplicada a pessoas decrépitas, aos que enfrentam graves padecimentos físicos, dores incontroláveis ou aqueles que perderam o domínio das faculdades mentais. Fora de tais situações, no entanto, associamos esse momento à tragédia, à tristeza profunda e ao desconsolo.

Pessoalmente fui marcado pela conotação dramática da morte em infância no Brás, habitado por imigrantes oriundos de pequenas aldeias da Itália, de Portugal e Espanha, que vinham atrás de trabalho nas fábricas do bairro de São Paulo. Quando morria alguém da família, estendiam na janela um pedaço de veludo preto, com franjas douradas, e montavam o velório na própria casa, com o caixão sobre a mesa de jantar, entre quatro castiçais de prata, que espalham o cheiro forte das velas — para mim definitivamente associado à presença da morte.

Às crianças, não permitiam entrar na sala que jazia o corpo. Nossa única oportunidade de acesso visual à cerimônia acontecia na saída para o enterro, momento que aguardávamos com ansiedade na calçada. O sinal que esse instante se aproximava era dado pela chegada do carro funerário, que estacionava em frente à casa.

Pela janela, ouvíamos a oração final do padre, seguida dos lamentos e gritos de desespero das mulheres quando a tampa do caixão era fechada. Não demorava para saírem os homens de semblante pesaroso e terno escuro, com uma faixa preta na lapela, carregando o caixão pelas alças. Nessa hora a intensidade da choradeira atingia o auge. Havia mulheres que se agarravam ao caixão para puxá-lo de volta; outras se atiravam contra a janela do rabecão.

A tragédia da morte, representada por essas imagens teatrais, permaneceu congelada em minha imaginação até os primeiros meses de exercício da cancerologia. Tomei consciência e comecei a me livrar dela aos 32 anos, graças ao Seo Vitorino, um senhor nascido no interior de Minas, no início do século XX, como consequência da paixão de uma costureira por um mascate sírio, que visitava a cidade a cada três semanas.

Pra fugir do falatório do lugar, a jovem mãe solteira veio para São Paulo com o menino, e se instalou na casa da tia-avó, numa travessa do Largo São José do Belém — um fim de mundo naquele tempo. Costureira habilidosa e infatigável, em poucos anos ela pôde morar só com o filho, e pagar-lhe os estudos no Colégio Coração de Jesus, dos padres salesianos, até que ele se formasse contador.

Seo Vitorino tinha mulher e duas filhas casadas, quando o conheci com o abdômen distendido, cheio de líquido, por causa de um tumor avançado no fígado. Tratei dele apenas um mês, a segunda metade do qual em visitas diárias a seu leito hospitalar. Nesse período, jamais o encontrei sozinho; a esposa e as filhas se revezavam, atenciosas e solidárias. Numa das visitas, deparei com as três a cuidar dele, e em tom de brincadeira, disse-lhe que me sentiria realizado se um dia recebesse de minha mulher e de minhas filhas o amor que as dele lhe dedicavam. “Não é difícil, é só o senhor ser pra elas o marido e o pai que ele tem sido pra nós”, respondeu a filha mais velha.

Minutos antes de Seo Vitorino falecer, fui chamado pra vê-lo. No quarto, a esposa acariciava-lhe os cabelos; do outro lado, de frente para o pai, as filhas em pé, abraçadas pelos maridos, guardavam pequena distância do leito. O pôr do sol deixava o quarto alaranjado. Inconsciente, Seo Vitorino respirava com grande dificuldade. Acelerei o gotejamento do soro com morfina para impedir que ele sentisse algum mal-estar, e aguardei ao lado, a observar em silêncio os movimentos respiratórios cada vez mais espaçados e superficiais.

Cinco minutos depois, uma pausa demorada antecedeu o último estertor, que produziu a contração dos músculos do pescoço e provocou a emissão de um som rouco, quase inaudível, de curtíssima duração. Nada mais. Ninguém chorou. Ficamos na posição que nos encontrávamos: estáticos, por um tempo longo. Nunca havia imaginado que a morte pudesse trazer tamanha paz.

Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias.

A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.

Veja também: O momento da morte | Artigo

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