Síndrome de Tourette – DrauzioCast #183

Especialista responde às principais dúvidas sobre a Síndrome de Tourette, que causa tiques involuntários. Ouça no DrauzioCast.

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Publicado em: 15 de julho de 2022

Revisado em: 17 de agosto de 2022

Especialista responde às principais dúvidas sobre a Síndrome de Tourette, que causa tiques involuntários. Ouça no DrauzioCast.

 

 

 

A Síndrome de Tourette é um distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado por tiques múltiplos, motores ou vocais, que normalmente aparecem na infância. Em alguns casos, a condição pode causar constrangimento ao paciente, que por vezes sofre preconceito em razão de seus tiques. A Síndrome de Tourette não tem cura, mas pode ser controlada.

Neste episódio do DrauzioCast, a psiquiatra ​​Ana Gabriela Hounie esclarece as principais dúvidas sobre o distúrbio e fala sobre os possíveis tratamentos. Ouça.

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Olá, meus amigos, nós vamos falar sobre uma síndrome um pouco estranha. Certamente, você já viu alguns casos, mas não sabia que tinha esse nome, é chamada Síndrome de Tourette. É um distúrbio neurológico e causa tiques involuntários e repetitivos. Os tiques são basicamente de dois tipos principais: os vocais, que podem ser pequenos pigarros, alguns barulhos, alguns sons de repetição, algumas palavras-tabu, às vezes, palavrões até, e os tiques motores, que são o segundo grupo e são movimentos, em qualquer parte do corpo, que se tornam repetitivos.

É uma doença difícil de diagnosticar e até hoje as causas permanecem desconhecidas. É também um distúrbio que pode ser associado a outras condições, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, o TDAH, e o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, o TOC. Embora não exista cura para a Síndrome de Tourette, os tratamentos disponíveis podem contribuir para reduzir os sintomas e ampliar e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Pra conhecermos um pouquinho mais sobre essa condição, nós trouxemos uma psiquiatra, a doutora Ana Gabriela Hounie, que é autora de um livro sobre a Síndrome de Tourette e escreveu vários capítulos de livros na literatura médica sobre o tema. Seja bem-vinda, Ana Gabriela.

 

Dr. Drauzio Varella: Pra começar, vamos definir o que é a Síndrome de Tourette. Eu dei uma explicação muito simplória, né.

Dra. Ana Gabriela Hounie: Não, mas tá perfeita. Na realidade, a Síndrome de Tourette é justamente o conjunto de tiques motores e vocais que não precisam acontecer ao mesmo tempo. Então, a pessoa pode passar alguns meses com tiques motores, depois, alguns meses com tiques vocais, e, se esses tiques forem crônicos, ou seja, durarem um ano ou mais, a gente já pode bater o martelo e dizer que é a Síndrome de Tourette.

 

DV: Que sintomas podem ser indicativos de que uma criança ou adolescente tenha essa condição?

Dra. Ana Gabriela: Olha, em geral, os tiques começam na infância, ao redor dos seis, sete anos de idade. Costuma haver uma piora na adolescência e, aí, depois disso, eles costumam diminuir. Na idade adulta, um terço vai permanecer tendo tiques, um terço melhora, continua tendo tiques, mas mais brandos, e um terço fica sem tiques. Isso, independentemente de tratamento ou não. Então, quando a criança começa a piscar muito os olhos, por exemplo, fazer caretas, isso já pode ser um indicativo. A gente precisa acompanhar essa criança. Se os tiques não forem graves, não há necessidade de tratamento imediato, mas, se esses tiques persistirem e começarem a atrapalhar o dia a dia, que eles são chatos, né, muitos são fortes, incomodam, causam dor, tensão muscular, atrapalham a concentração. Nesse caso, é prudente levar a um neurologista ou a um psiquiatra pra uma avaliação mais aprofundada.

 

DV: E quais são, assim, os mais frequentes, que tipo de tiques?

Dra. Ana Gabriela: Olha, na verdade, tem possibilidades infinitas porque, como os tiques são contrações musculares e os tiques vocais são emissão de barulhos ou palavras, então, eles podem ser os mais variados. Mas é muito frequente que comece no rosto. Então, piscar olho, fazer careta, colocar a língua pra fora, girar os olhos, né, e costuma haver uma progressão que a gente chama de rostrocaudal, começa no rosto e depois ele vai descendo, vai pra ombro, vai pra perna. Tem aqueles que se agacham e levantam ou pulam, ou giram. E os tiques vocais mais comuns são tossir, pigarrear e os mais complexos são a coprolalia, que é falar palavrão involuntariamente, ecolalia, que é repetir o que outra pessoa falou, e palilalia, que é repetir a mesma coisa várias vezes. Esses tiques mais complexos, eles têm um caráter um pouco mais compulsivo, a pessoas se sente obrigada a fazer. E os tiques mais simples, como piscar olho ou fazer careta, muitas vezes, são totalmente involuntários, a pessoa, quando vê, já fez.

 

DV: E ela tem consciência?

Dra. Ana Gabriela: Muitos têm. Quanto mais grave, vai ter mais consciência, é claro, mas tem pessoas que têm tão pouco que nem percebem. Então, é frequente que um pai traga a criança na consulta, falando dos tiques dele, o pai tá lá piscando, mas ele não se dá conta que tá piscando, né. Muitas vezes, os tiques são muito leves, né, não precisam nem sequer de tratamento e acabam nem recebendo diagnóstico.

 

DV: Eu, no começo dessa nossa conversa, falei de TDAH, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, e do TOC. Fala um pouquinho da associação entre a Síndrome de Tourette e esses transtornos compulsivos.

Dra. Ana Gabriela: É uma associação bem comum, então, até 30% das pessoas que têm Tourette também têm também TOC e em torno de 10% dos que têm Tourette também vão ter TDAH, Déficit de Atenção e Hiperatividade. Todas essas doenças são transtornos do neurodesenvolvimento, então, é muito comum que elas apareçam em conjunto. E, além disso, tem fatores genéticos. Então, existem maiores possibilidade de você encontrar uma pessoa com TOC na família de alguém que tem tiques e vice-versa. Então, existe um componente genético, mas os desencadeantes ambientais também são bem importantes, principalmente infecções. Então, existe um quadro, que a gente chama de PANDAS, que vem do acrônimo do inglês para transtornos psiquiátricos autoimunes desencadeados por uma infecção estreptocócica. Então, da mesma maneira que o estreptococo causa febre reumática por um mecanismo imunológico, em algumas pessoas suscetíveis, isso vai causar TOC, tiques e déficit de atenção.

 

DV: Mas é difícil pensar na fisiopatologia disso, né. Como é que uma bactéria acaba provocando uma síndrome, que, eventualmente, é muito rica, né. Tem gente que tem tiques que interferem com a qualidade de vida, não é. 

Dra. Ana Gabriela: Sim.

 

DV: Como é que você diferencia num caso desse? Em que que você se baseia pra dizer não isso aqui é TOC ou isso aqui é síndrome de hiperatividade ou Tourette?

Dra. Ana Gabriela: É, os sintomas, eles são diferentes, né. A Tourette vai ter os tiques motores e vocais. Na hiperatividade e déficit de atenção, você vai ter inquietação motora, que não é necessariamente tique, né, é uma agitação, incapacidade de ficar parado, aquela pessoa agoniada, que tá sempre balançando a perna. E, no caso do TOC, você tem rituais, que são obsessões e as compulsões, que são os rituais que a pessoa faz pra aliviar aquele pensamento. Então, você precisa fazer uma entrevista direcionada, perguntando sobre todos os sintomas dessas três patologias pra ver se a pessoa tem só uma ou duas, ou três, né. Muitas vezes, a gente recebe o trio completo, que são os casos mais difíceis de tratar.

 

DV: E como você faz o diagnóstico? É puramente clínico, o de Tourette?

Dra. Ana Gabriela: Sim, o diagnóstico é puramente clínico, não tem nenhum exame que confirme. O que a gente pede são exames complementares, que vão ajudar a gente a descartar outras patologias. Por exemplo, existem casos relatados de traumatismo cranioencefálico, resultando numa Síndrome de Tourette, ou tumor cerebral, resultando num quadro de TOC. Então, você faz exames pra descartar causas orgânicas e, tando tudo normal, fica fechado o diagnóstico neuropsiquiátrico.

 

DV: Você falou em neuropsiquiátrico, assim. É uma doença mais de fundo neurológico ou mais de fundo psiquiátrico, né, o que predomina?

Dra. Ana Gabriela: É, as duas, por isso que a gente fala neuropsiquiátrico, né. Tem um componente neurológico, mas tem um componente psiquiátrico muito grande porque depende da vontade, você tem o humor sendo afetado, é muito frequente haver ansiedade e depressão, a ansiedade piora os tiques. É tão imbricado, né, o neuro com o psiquiátrico que a gente acaba falando que é neuropsiquiátrico.

 

DV: E o tratamento, como é que você encaminha esses quadros, né? Você recebe um paciente que vem com tique, com uma alteração importante no comportamento, que interfere com a vida dele. Como é que você orienta?

Dra. Ana Gabriela: Bom, a gente faz toda essa investigação clínica, pra afastar outras causas e também pra detectar se existem coisas que possam estar piorando os tiques. Então, existem trabalhos que mostram que as crianças que têm Síndrome de Tourette, se os níveis de vitamina D e vitamina A delas forem menores, a ferritina também, elas têm tiques mais graves. Então, a gente vai tratar a anemia, vai fazer suplementação com vitamina D, com vitamina A, enfim, tudo o que for necessário. Isso tudo ajuda o tratamento, de maneira que as doses que a gente vai precisar de medicação são menores. Então, existem várias medicações que atuam nos tiques. Nenhuma é 100% eficaz, então, elas variam aí de 60% a 90% de eficácia e, pra aqueles casos que não respondem a nada, que a gente chama de refratários, a gente pode testar a cannabis medicinal, que tem se mostrado extremamente útil e, por último, a cirurgia, a estimulação cerebral profunda, que é uma neurocirurgia pra esses casos ultrarrefratários que realmente não melhoram com absolutamente nada.

 

DV: E os resultados?

Dra. Ana Gabriela: Os resultados são bons. Desse grupo ultrarrefratário que se opera, em torno de 70%, 80% vai ter benefício.

 

DV: E é uma cirurgia simples?

Dra. Ana Gabriela: É uma cirurgia em que se instala um eletrodo, né, profundamente no cérebro, é a mesma cirurgia que se faz pra casos de Parkinson, pras epilepsias refratárias. Nenhuma neurocirurgia é simples, mas, levando em conta que não precisa abrir o crânio completamente, é mais simples do que uma neurocirurgia pra retirada de um tumor, por exemplo.

 

DV: E como os tiques costumam variar nas pessoas que não fizeram nenhum tratamento? Assim, no decorrer da vida, o que acontece com eles?

Dra. Ana Gabriela: Os tiques vão variando sempre, né, com tratamento ou sem tratamento, eles vão mudando. Então, tem essa progressão, que a gente chama de rostrocaudal, e mesmo assim eles podem voltar. Por exemplo, em uma época tem um tique de contração do abdômen, depois, isso muda pra mexer o ombro, depois, ele tá com uma fase de fazer careta. Então, eles vão mudando ao longo do tempo. Por que isso ocorre a gente não sabe, mas é possível que tenha a ver com questões sensoriais, porque as pessoas que têm Tourette, elas são mais sensíveis a determinados estímulos. Então, por exemplo, uma pessoa que usa óculos, ela fica com mania de levantar os óculos porque os óculos escorregam no nariz. Depois, mesmo que ela não use óculos, ela fica com aquele tique de colocar o dedo na testa. Então, os estímulos podem favorecer o surgimento de novos tiques, são como se fossem trechos, né, fragmentos de movimentos que se congelam, que se eternizam no tique.

 

DV: E crianças, especialmente, quando a família te procura com “ah, o meu filho tá cheio de tiques aqui”, e você fica na dúvida se é Tourette ou não. Como é que você costuma agir?

Dra. Ana Gabriela: Olha, existe muita dúvida principalmente quando a criança tem autismo, porque no autismo você tem muitas estereotipias, que são movimentos e, muitas vezes, eles se confundem com tiques. Então, às vezes, fica difícil de diferenciar se aquilo é um tique ou se é estereotipia. Muitas vezes, a gente trata, e aí, dependendo do resultado, a gente acaba decidindo se era tique ou estereotipia, porque as estereotipias respondem muito mal à medicação. Então, não melhorando, tem mais chance de que seja uma estereotipia.

 

DV: Você há pouco falou do pai que leva uma criança, dizendo que a criança tem tiques e o pai fica piscando o olho.  Enfim, você olha e vê que o pai tem tiques também, né. É muito frequente essa condição hereditária?

Dra. Ana Gabriela: Olha, os casos mais graves não são tão frequentes, né. Acabou de sair um estudo agora nos Estados Unidos sobre a prevalência de Tourette. Eles estimaram que deve ter um milhão de casos nos Estados Unidos de tiques motores persistentes, ou seja, não é Tourette porque não são motores e vocais, são só ou motores, ou vocais, e em torno de 400 mil de Síndrome de Tourette. Então, a população, que tem 360 milhões, não é tanto assim, é tipo um pra dez mil, digamos. Por outro lado, tem estudos que foram feitos na Inglaterra que encontraram um por cento nas escolas, né. Então, eles foram avaliar as escolas e encontraram que um por cento dos alunos tinham. Então, não tem muitos estudos, assim, epidemiológicos. Aqui no Brasil não tem nenhum, a gente não sabe qual é o número aqui no Brasil. Agora, uma coisa que a gente tem visto é que tem aumentado a frequência. E, aí, eu atribuo justamente a esses fatores ambientais, as infecções, o estilo de vida, deficiências nutricionais, e assim por diante.

 

DV: A síndrome é mais frequente nos meninos do que nas meninas. Existe alguma explicação pra isso?

Dra. Ana Gabriela: Não se sabe, né. Pode ser que tenha a ver com questões genéticas ou questões hormonais. A testosterona, por exemplo, piora os tiques. Você pode ter pessoas com tiques que desencadearam porque usam anabolizantes porque são fisiculturistas, por exemplo, né, ou porque malham, vão na academia e tomam não só a testosterona, mas energéticos, cafeína. Então, tem questões hormonais, mas deve se dever também a questões genéticas. Mas não tá claro.

 

DV: Se um dos nossos ouvintes, ouvindo você falar, disser: “Olha, será que meu filho não tem isso? Eu vejo que ele tem um determinado tique.” Mas ele não tem acesso a nenhum convênio, a nenhum médico particular. Ele encontra uma estrutura no SUS, nas unidades básicas de saúde em que ele possa ser tratado?

Dra. Ana Gabriela: Olha, o mais provável é que ele, encontrando um hospital terciário, por exemplo, um hospital-escola, ele consiga um ambulatório de psiquiatria e lá ele consiga ter tratamento ou na pediatria, na neuropediatria. Nos postos de saúde, onde o atendimento é mais primário, dificilmente você vai encontrar um especialista na Síndrome de Tourette, porque são poucos os médicos que têm toda essa experiência. Então, o caminho seria pedir pra o médico do posto encaminhar prum hospital-escola.

 

DV: Tá ótimo, Ana, muito obrigado pela participação nessa nossa discussão aqui.

Dra. Ana Gabriela: Eu é que agradeço a oportunidade e um abraço pra todos.

 

Nós acabamos de falar com a psiquiatra Ana Gabriela Hounie, que é especialista em Síndrome de Tourette.

Muito obrigado, Ana. Muito obrigado a todos pela atenção.

Veja também: Tiques, síndrome de Tourette e TOC | Entrevista

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