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Outras Histórias #40 | Biró e o menino

Conheça Biró, o boneco que, por obra do destino e das águas do rio Parnaíba, virou símbolo de devoção.
Publicado em 27/11/2021
Revisado em 30/11/2021

Conheça Biró, o boneco que, por obra do destino e das águas do rio Parnaíba, virou símbolo de devoção.

 

 

 

À beira do rio Paranaíba havia um menino, filho único de um casal de lavradores, que morava em uma casa isolada de pau a pique. Por ser muito distante da vizinhança mais próxima, o menino cresceu sozinho, sem ter com quem brincar além dos pais e da própria imaginação. A única vez em que se reunia com outras crianças era quando a família viajava por mais de 3 horas para participar das festas religiosas na igreja do povoado.

Depois que a mãe do menino faleceu, a vida nos arredores da casa ficou ainda mais solitária. O pai, na tentativa de alegrar o filho, resolveu esculpir um boneco. Biró, como foi apelidado, virou companhia inseparável do menino, que o carregava para cima e para baixo. Mas, certo dia, quando foram pescar, a força da correnteza acabou arrastando-o para longe do amigo.

Anos depois, eles se reencontrariam, mas Biró agora era mais que um boneco: era um santo. Ouça neste episódio do Outras Histórias.

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Eu vou contar pra vocês, hoje, uma história que eu ouvi de um senhor no Amazonas, que o pai dele, que era maranhense, contava pra ele quando ele era criança.

Era a história de um menino de cinco anos, que era filho único de um casal de lavradores, que tinha nascido numa casinha de pau a pique na beira do Rio Parnaíba. — O Parnaíba é o rio que separa os estados do Maranhão e do Piauí. — E ele dizia que o menino vivia triste.

Não é que ele não fosse maltratado pelos pais, nada. Ao contrário, os pais tinham muito afeto por ele e demonstravam esse afeto nas mínimas atitudes. A causa da tristeza do menino era a vida solitária que ele levava; ele não tinha com quem brincar.

A casa era isolada, a mais próxima ficava a léguas de distância, e o menino só encontrava outras crianças nas festas religiosas, em homenagem ao santo de devoção na igrejinha do povoado. Levavam três horas pra chegar na igrejinha, ele e a mãe montados num jerico — o jerico chamado de Teimoso —, e o pai a pé, puxando as rédeas.

Nessas ocasiões, o menino vestia calça comprida, que era costurada pela mãe, camisa branca engomada, um chapeuzinho de couro e calçava sapatos — um verdadeiro martírio pra’queles pés acostumados à liberdade.

Certa manhã, quando os primeiros raios de sol entraram pelas frestas da casa, o menino acordou e viu que o pai não tinha saído pra roça, como fazia todos os dias. Tava sentado num banquinho tosco, ao lado da cama, tentando fazer a mulher tomar uma caneca de chá.

O menino notou o rosto da manhã afogueado pela febre e a debilidade que ela parecia sentir. No dia seguinte o pai pediu que ele corresse ao vizinho mais próximo e arranja-se uma carroça pra levar a mãe ao povoado. O menino correu o mais que pôde, mas quando voltou com a carroça, era tarde demais.

Com a falta da mãe, a vida se tornou ainda mais solitária. O pai cozinhava o feijão com carne de sol e mandioca, ordenhava as cabras antes de clarear o dia, recomendava ao filho que não se aproximasse do rio e ia pra roça trabalhar.

O menino perambulava ao redor da casa, trepava nas árvores, colhia frutos e conversava com amigos imaginários. Triste pela perda da companheira e condoído com a solidão do filho, num domingo de chuva, o pai cortou o tronco de uma cajazeira. — Cajazeira é uma árvore alta de madeira leve, que dá um fruto, que é o cajá, né, do qual se faz um suco bem gostoso. — E o pai pegou então esse tronco de cajazeira e esculpiu com rara habilidade aquele que seria batizado de Biró, um boneco do tamanho do menino — ou quase do tamanho do menino.

Biró mudou a vida da criança. Dormiam e acordavam juntos, sentavam pra tomar café e corriam para brincar. Pra onde ia, o menino arrastava o boneco. Viviam aventuras em terras estrangeiras, enfrentavam inimigos invisíveis, montavam cavalos fogosos, riam e às vezes choravam de saudades da mãe.

Num final de tarde, depois de vários dias de chuva, o pai, pra distrair o filho, levou-o para pescar na beira do rio. — Biró foi junto, é claro né? — Calmo na estiagem, o Rio Parnaíba escoa com força na época das chuvas, inunda as margens e volta a secar.

Naquele dia, as águas estavam especialmente revoltas. Desciam barrentas, com galhos de árvores e formavam redemoinhos espirais, que corriam o rio abaixo em circunvoluções ligeiras. Do barranco, o lavrador lançou as três iscas na água.

O menino encostou o Biró numa pedra, e com uma tira de pano, amarrou a vara de pesca entre as mãos do boneco. Depois, recomendou a ele que não fizesse barulho, pra não espantar os peixes, e sentou para pescar.

Quis a sorte que o Biró fisgasse um peixe valente. Ao sentir o anzol espetar-lhe a mandíbula, o peixe nadou com força redobrada a favor da correnteza. A linha ficou tão esticada que cantou. Com as mãos presas à vara, Biró foi puxado num tranco, barranco abaixo, pra dentro do rio.

Aconteceu tão depressa, que os dois pescadores só perceberam quando o boneco já estava na água, agarrado à vara de pesca. O desespero do menino foi tamanho, que o pai precisou contê-lo, pra ele não se atirar atrás do amigo inseparável.

Nas noites que se seguiram, muitas vezes o coração do lavrador foi cortado pelo choro abafado do filho, que não conseguia pegar no sono de saudades do boneco.

Biró foi arrastado pelas águas durante aquela noite e o dia seguinte. Foi parar de madrugada no redemoinho provocado pelos galhos de uma árvore oca, caída na margem, em frente a uma comunidade composta por 10 casinhas de pau a pique, alinhadas do lado esquerdo do rio.

Por capricho do destino, os pés do boneco engancharam no oco do tronco de uma árvore, de modo que, empurrado pela correnteza, Biró ficou em pé, de frente para o casario.

De manhã bem cedo, as primeiras mulheres, que vieram buscar água, custaram a acreditar na aparição.

— É um santo. — Disse a mais velha delas e caíram todos de joelhos diante da imagem.

Em poucos minutos, a comunidade inteira se aglomerava na beira do rio. Com extremo cuidado, quatro homens tiraram Biró da água e o levaram pra uma capelinha com uma cruz branca, construída entre as casas. Lá, faziam suas orações, e quando o padre visitava o local, casavam-se, batizavam os recém-nascidos e assistiam à missa.

A notícia da chegada do santo se espalhou feito chama no palheiro. Houve quem viajasse dois dias a pé ou em lombo de burro, só para ver a imagem. Em mutirão, construíram uma capela maior, de madeira, com bancos e um altarzinho, que enfeitavam com toalha bordada e dois vasos de flores para o santo protetor.

Aos sábados e domingos, vindos de longe, os fiéis rezavam novenas, as mulheres, com véu escuro a cobrir o rosto, e os homens, de cabeça baixa e chapéu, nas mãos em sinal de respeito.

Os moradores da região faziam promessas ao santo aparecido. Pediam chuva pra lavoura, que Deus tivesse em bom lugar os mortos da família e devolvesse a saúde aos entes queridos.

Segundo o costume antigo, os fiéis voltavam mais tarde, pra demonstrar a gratidão pela graça recebida, trazendo fitas coloridas e peças de madeira esculpidas, representando cabeças, braços ou pernas quebradas, para simbolizar a cura dos males obtida por intermediação do santinho.

Passou o tempo. Um dia o menino caiu do jerico, o Teimoso, e quebrou o braço. O pai colocou uma tala no membro fraturado, imobilizou com uma tipóia e fez uma promessa: se o filho ficasse bem, ele o levaria com um braço esculpido em madeira, para vender graças ao santo de quem toda a gente falava.

O menino ficou bom. O pai, o filho e o Teimoso viajaram quase três dias, para chegar à comunidade ribeirinha no dia da festa anual do santo. Era a festa que comemorava a data da aparição no rio.

Entraram na igrejinha enfeitada de flores e bandeirinhas azuis e rosa. Dos ombros do santo no altar, pendiam as fitas coloridas, em contraste com o manto branco que ele usava. Na mão direita, trazia preso um cajado de madeira.

O menino ajoelhou quieto, ao lado do pai, irreverente do jeito bem que assim, fazendo reverência, e levou os olhos na direção da imagem, e não pôde acreditar.  Boquiaberto, ele cutucou pai, o pai não respondeu. Cutucou de novo. Na terceira vez, ele não se conteve e disse:

— Não é santo, pai, é o Biró. Esse é o meu Biró.

A primeira ideia do menino foi gritar que no altar não havia santo nenhum, que era Biró, o amigo de madeira caído no rio. Pensou em pedir licença, tirar as fitas e a roupa do boneco e levá-lo de volta para casa. Então, olhou as pessoas ao redor: a devoção das senhoras de véu, dos homens ajoelhados de chapéu na mão, dos portadores de defeitos físicos a rastejar até os pés da imagem.

— Que Biró, menino? — disse o pai. — Nada, pai, lembrei do meu boneco.

Ficaram na igreja até o fim do ritual. Quando todos saíram, o menino disse ao pai que havia esquecido no banco o missal herdado da mãe, e voltou para buscá-lo.

A igreja estava vazia, iluminada pela luz trêmula das velas. O menino subiu a escadinha que levava ao altar, afastou as fitas do boneco, abraçou-o com ternura e beijou-lhe a testa.

— Biró, meu santinho, fique aqui e ajude quem o procurar, como você ajudou a mim. Sempre que eu sentir saudade vou rezar pra você. Adeus.

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