Apesar dos esforços pontuais que fizeram o Brasil sair do Mapa da Fome, o desmonte de políticas públicas aumentaram a taxas desnutrição nos últimos anos.
O direito à alimentação adequada está previsto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, o Brasil sempre apresentou altas taxas de desnutrição, apesar dos esforços pontuais para enfrentar o problema.
Em 2014, o país saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas (ONU), graças aos avanços nos marcos legal e institucional sobre alimentação e nutrição e aos programas sociais que conseguiram reduzir a fome no país.
A partir de 2018, com o desmonte de programas e políticas sociais, a crise econômica e a pandemia de covid-19, o país voltou ao Mapa da Fome. Isso ocorre quando mais de 2,5% da população de um país enfrentam falta crônica de alimentos.
De acordo com o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, atualmente há no Brasil 33,1 milhões de pessoas sem ter o suficiente para se alimentar. Ainda segundo o estudo, 58,7% da população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar.
De acordo com Patrícia Jaime, nutricionista e professora titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSPUSP), a segurança alimentar está relacionada à percepção da família quanto ao risco de não acessar a quantidade suficiente de alimentos, e pode ser dividida em três níveis:
- Leve: quando há incerteza de obter alimento no futuro próximo ou quando há a necessidade de se alterar o tipo de alimento normalmente adquirido por outro de qualidade inferior (troca de carne por salsicha, por exemplo);
- Moderada: quando a família não consegue adquirir a quantidade adequada de alimentos. Em geral, afeta primeiro os adultos, pois as crianças costumam ser poupadas da restrição de alimentos sempre que possível;
- Grave: quando há privação de alimentos que acomete toda a família, incluindo as crianças.
Crianças desnutridas
A fome é terrível em qualquer idade, mas para as crianças pequenas, suas consequências são ainda mais devastadoras. Um levantamento feito pelo Observa Infância, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revelou que em 2021 houve uma média diária de 8 bebês com menos de 1 ano de idade internados com desnutrição no Sistema Único de Saúde (SUS), totalizando 2.979 hospitalizações no período. Esse número, o maior em 13 anos, deve ser ainda superior em 2022, já que até o dia 30/8 deste ano já foram internadas 2.115 crianças nessa faixa etária, o que representa um aumento de 7% em comparação ao ano interior.
Patrícia chama a atenção para a importância de uma nutrição adequada nos dois primeiros anos de vida. “A nutrição é fundamental para o capital humano. Se houver déficit nessa faixa etária, dificilmente recupera. Na primeira infância os estímulos e a nutrição são essenciais para o desenvolvimento”, explica.
Quando a fome se mantém por muito tempo, a criança deixa de crescer adequadamente. “Criança bem nutrida também é mais alta e tem mais massa muscular. As desnutridas saem em defasagem física e neurológica, e não precisa ocorrer desnutrição grave para que isso aconteça”, salienta Patrícia.
A desnutrição pode causar problemas graves de saúde, como cegueira, raquitismo, anemia, fragilidade óssea, queda de imunidade, o que aumenta o risco de infecções, transtornos mentais e morte. Para as crianças, pode trazer dificuldade de aprendizado, falta de atenção, má-formação óssea e décit de crescimento. Está relacionada ao aumento da mortalidade infantil, importante indicador de saúde e das condições de vida de uma população.
O Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) de 2019 mostrou que dos domicílios com crianças com menos de 5 anos, 47,1% apresentavam algum grau de insegurança alimentar, sendo 9% moderada e grave. As regiões Norte e Nordeste concentram a maioria dos casos: 61,4% e 59,7%, respectivamente.
Uma forma de avaliar a nutrição é verificando a altura da criança. Em casos de más condições de alimentação, a criança costuma apresentar déficit de altura para a idade.
Segundo o Enani, a prevalência de baixa estatura para a idade em crianças com menos de 5 anos é de 7% no Brasil, número considerado alto. Entre as crianças de 0 a 11 meses, esse número chega a 9%, subindo para 10,2% entre as crianças de 12 a 23 meses.
“A má-nutrição não afeta apenas a altura das crianças. Elas também ficam mais suscetíveis a diarreia e infecções respiratórias, em uma fase de grande necessidade nutricional”, conclui Patrícia.
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Crianças negras
A prevalência de crianças brasileiras com menos de 5 anos de idade com algum grau de insegurança alimentar foi de 40% entre as brancas e de 58,3% entre as negras, o que revela que a desnutrição também precisa ser analisada pela perspectiva racial.
Em entrevista a este Portal, a nutricionista e pesquisadora em segurança alimentar e nutricional para a população negra Áurea Santa Izabel afirmou que pardos e negros compõem a maior parte da população pobre brasileira e que vive nas periferias das grandes cidades e nos locais mais afastados das áreas rurais, nas regiões conhecidas como desertos alimentares, áreas em que há pouca oferta de alimentos in natura, como frutas, legumes e verduras.
Com pouca renda e dificuldade de acesso a alimentos mais nutritivos, essa população consome mais alimentos industrializados e ultraprocessados, que além de terem baixo valor nutricional, ainda são ricos em sódio, gorduras e açúcares. Portanto, essa população fica mais vulnerável tanto à obesidade e suas consequências, como hipertensão e diabetes, quanto à desnutrição, conforme mostram os dados do Enani 2019.
O problema da insegurança alimentar não ocorre por escassez de alimentos, como salientou Áurea, mas por problemas de distribuição. O Brasil é um dos países que mais produz alimentos no mundo, mas boa parte da produção é voltada à exportação e à alimentação de gado. Sem interesse político e programas sociais que visem à redução da desigualdade, é pouco provável que o país consiga reduzir os índices de insegurança alimentar em curto prazo.
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