Traumatismos | Entrevista

Trauma é uma das principais causas de morte no País. Em algumas regiões, o traumatismo é a segunda causa de morte e atinge, especialmente, os mais jovens.

Compartilhar

Publicado em: 31 de agosto de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

A taxa de mortalidade por trauma pode ser reduzida com medidas como a conscientização da sociedade e uma política governamental consistente. Veja entrevista. 

 

Trauma é uma das principais causas de morte no País. Nas regiões sul e sudeste, onde o número de pessoas com mais idade é maior, ele ocupa o terceiro lugar entre as causas de mortalidade, precedido apenas pelas doenças cardiovasculares e neoplasias malignas. Já nas regiões norte e nordeste, o traumatismo é a segunda causa de morte e atinge, especialmente, os mais jovens.

Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, os Indicadores Sociais que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em 24 de fevereiro de 2005 revelam que o aumento de mortes de jovens do sexo masculino por causas externas, como homicídios e acidentes, entre 1993 e 2003, mudou o perfil da população brasileira, tornando ainda maior o número de mulheres em relação ao de homens existentes no País (95,2 homens para 100 mulheres). A pesquisa sugere, também, que por trás das mortes violentas estão a expansão do tráfico de drogas e o acesso facilitado às armas de fogo.

O mais triste, porém, é que a taxa de mortalidade por traumatismos poderia ser reduzida com a conscientização da sociedade e uma política governamental consistente.

 

PRINCIPAIS CAUSAS

 

Drauzio – Quais são as características das principais causas de traumas em nosso País?

Dario Birolini – Você mencionou o trauma como a segunda ou terceira causa mais comum de morte no Brasil. Em números, isso significa alguma coisa em torno de 130 mil mortes por ano. Pode-se dizer que, enquanto conversamos durante meia hora, uma dezena de pessoas está morrendo vítima de violência física.

Considerando a faixa da população abaixo de 40 anos e, particularmente, o grupo mais jovem, com menos de 18, 20 anos, a morte por causas externas, ou seja, por violência de várias naturezas ocupa o primeiro lugar, o que permite concluir ser o trauma uma doença que afeta gente jovem e tem custo social muito grande.

As causas da violência obedecem às características econômicas e culturais da população. O que vale para o Brasil pode não valer para Itália, China, Japão, Alemanha ou Estados Unidos. Na Europa e no Oriente, por exemplo, o número de suicídios e muito maior do que no Brasil, onde as duas causas de morte mais frequentes são os homicídios e aquilo que se chama inadequadamente de acidentes de trânsito, porque envolvem veículos automotores de vários tipos (colisões, atropelamentos etc.).

Sempre insisto em que a frequência dos homicídios, da violência interpessoal, é reflexo da realidade socioeconômica e cultural do País. Vale, também, a pena ressaltar um aspecto do qual as pessoas frequentemente se esquecem: quem sofre um ato de violência pode sobreviver, mas a grande maioria fica com sequelas importantes. Não tenho dados oficiais a respeito, mas posso afirmar com razoável segurança que para cada caso de morte correspondem pelo menos três sequelados. São cegos, amputados, paraplégicos, hemiplégicos, grandes queimados, portadores de sequelas que os obriga a modificar radicalmente o estilo de vida e comprometem seu futuro.

 

MUDANÇA DE PERFIL

 

Drauzio – Você tem uma experiência acumulada em várias décadas de serviço no pronto-socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo. Nos últimos 20 anos, houve alguma mudança significativa no padrão dos traumas que ocorrem numa cidade grande como São Paulo?

Dario Birolini – A principal mudança foi o aumento progressivo da frequência com que ocorrem traumas e mortes violentas por agressão interpessoal e, infelizmente, a tendência é que continuem aumentando. Volto a insistir no ponto que isso reflete a transformação estrutural pela qual o País tem passado e exige nova postura não só do governo central, mas de cada um de nós, no sentido de começar a pensar no problema a fim de propor alternativas para tentar corrigi-lo.

 

Veja também: Acidentes de trânsito

 

Drauzio Esse crescimento de casos se verifica também no número de acidentes automobilísticos?

Dario Birolini – Quando o Código de Trânsito foi implantado alguns anos atrás, houve um decréscimo no número de mortes que tinham como causa acidentes com veículos automotores. Hoje, parece que estamos voltando à situação anterior à vigência dessa lei, e as razões são muitas: baixo grau de adesão às regras de trânsito por parte dos motoristas, fiscalização ineficiente, abuso de álcool, entre outras. Para corrigir esse desvio seriam necessárias campanhas de esclarecimento para convencer a população da importância da obediência às leis de trânsito e uma fiscalização bem feita.

 

Drauzio – Não faz muito tempo que praticamente não havia motocicletas em São Paulo. Hoje, elas lotam ruas e avenidas e parece que a cidade não viveria sem elas. O aumento da frota de motos refletiu no número de acidentes de trânsito?

Dario Birolini – Não só fez crescer o número de mortes causadas por acidentes com veículos automotores, como intensificou a gravidade das lesões. Infelizmente, tenho enorme experiência em lesões pélvicas que ocorrem nos acidentes com motos, tanto que sou chamado para dar aulas sobre o assunto em vários países do mundo. Essas lesões são gravíssimas. O motoqueiro cai com as pernas abertas, fratura a bacia, rasga os órgãos genitais e o reto. Não se trata de um acidente que ocorre por fatalidade, uma vez que essas lesões poderiam ser prevenidas e evitadas com um mínimo de cuidado.

 

Drauzio Quem anda de motocicleta está mais exposto a lesões desse tipo, sem dúvida.

Dario Birolini – No Brasil, existem dois códigos de trânsito: um para o indivíduo que se locomove sobre quatro rodas e outro para quem se locomove sobre duas rodas. Este não obedece à maioria das regras impostas para os que andam sobre quatro rodas. Dirigem entre os veículos em velocidade superior à permitida, ficam ziquezagueando no meio dos carros, não respeitam a sinalização. Cometem tais infrações ao nosso lado e na nossa frente e nós aceitamos tudo mais ou menos passivamente.

 

Drauzio – Sem medo de errar, pode-se dizer que o número expressivo de mortes e traumas com sequelas que ocorrem todos os dias está associado à enorme frota de motocicletas existente nas grandes cidades brasileiras.

Dario Birolini – O pior é que muitas dessas mortes e sequelas poderiam ser evitadas desde que houvesse adesão, por pequena que fosse, às regras básicas de trânsito.
No entanto, existe uma série de fatos importantes que precisam ser considerados. O motoboy, por exemplo, precisa fazer diversas entregas em pouco tempo para conseguir ganhar o mínimo necessário e isso o obriga a desobedecer às regras de trânsito. E não é só ele. Motorista de caminhão obrigado a dirigir muitas horas seguidas, às vezes, faz uso de drogas para manter-se acordado. Isso altera seus reflexos e aumenta a probabilidade de que atropelamentos e colisões aconteçam. Como se vê, a culpa não é só deles, que acabam sendo vítimas dessa distorção, mas de todos nós.

 

Veja também: Acidentes domésticos

 

MEDIDAS DE SEGURANÇA

 

Drauzio – Durante muitos anos você defendeu a necessidade do uso do cinto de segurança, mas era meio como semear no deserto. Ninguém ouvia. De repente, entrou em vigor uma lei, seguida de fiscalização e multas, e os brasileiros passaram a usar mais o cinto de segurança do que os canadenses. Como você acha que deve ser a intervenção do Estado na implantação de medidas como essa?

Dario Birolini – Continuo achando que o uso do cinto de segurança deve ser obrigatório. As pessoas deviam conscientizar-se de que ele não é uma exigência arbitrária e desagradável, mas uma forma de garantir a segurança do motorista e dos passageiros dos veículos. Entretanto, você já deve ter entrado num táxi e visto o motorista apenas colocar o cinto por cima do corpo, sem fixá-lo, expondo-se a um risco absolutamente desnecessário. Quem age assim deveria ser colocado numa escola até ficar convencido de que o uso do cinto é fundamental para sua segurança. Aliás, o trabalho de conscientização deveria fazer parte do currículo escolar para que desde cedo a criança aprendesse a importância que tem para sua vida adotar certas atitudes.

Por saber que existem indivíduos como o motorista de táxi do exemplo, a tendência do mundo inteiro é desenvolver medidas de segurança passiva, isto é, que independem da vontade da pessoa para funcionar. Veja o exemplo do airbag. Ele infla e protege os ocupantes do veículo na hora de uma colisão frontal ou lateral sem que eles precisem fazer coisa alguma.

E tem mais: a preocupação que se tem em aumentar a segurança dos veículos deveria ser a mesma no que se refere aos acidentes de trabalho. A maior parte deles poderia ser evitada desde que fossem adotadas medidas, tanto ativas quanto passivas, de prevenção.

 

Drauzio – Não há a menor dúvida de que o uso do cinto de segurança fez com que diminuíssem os casos de pessoas com lesões graves no rosto por causa da batida do carro.

Dario Birolini – É verdade. Passo visita no pronto-socorro do Hospital das Clínicas e, dependendo do perfil das lesões, sei dizer se a pessoa estava ou não usando o cinto de segurança. Lesões na face e cegueira, por exemplo, são típicas de quem não estava usando cinto. Por isso, continuar insistindo sobre a obrigatoriedade de colocar o cinto assim que a pessoa entra no carro é fundamental para evitar traumas que acarretam prejuízos pessoais e para a sociedade.

 

Drauzio – São muitas as pessoas que morrem ou ficam lesadas por causa de atropelamentos?

Dario Birolini – Nas crianças, passados os três, quatro primeiros anos de vida, a causa de morte por trauma mais frequente é o atropelamento. Evitá-lo depende de dois fatores: educar a criança no sentido de que entenda seu papel como pedestre no presente e como motorista no futuro e conscientizar o adulto a respeito de como deve dirigir o automóvel. As regras de trânsito, todos conhecemos bastante bem. Só que não adianta conhecê-las; é preciso aplicá-las. Respeitar o farol, a faixa de pedestre, não abusar da velocidade são procedimentos óbvios que evitariam atropelamentos, se fossem adotados rotineira e conscientemente.

 

DrauzioPessoas mais velhas também são vítimas de atropelamentos com certa frequência. É curioso notar, porém, que muitas não costumam respeitar regras básicas para atravessar as ruas. Você vê senhores e senhoras de idade, às vezes a dez ou vinte metros da faixa de segurança, atravessando no meio dos automóveis e correndo o risco de serem atropelados por motocicletas.

Dario Birolini – Sob certo ponto de vista, esse comportamento é reflexo cultural da época em que as pessoas mais velhas começaram a atravessar as ruas. A cidade era outra, muito menos movimentada, e elas não foram educadas de forma conveniente para a realidade atual. Sem dúvida, os idosos também precisam ser esclarecidos sobre como devem portar-se ao atravessar uma rua, mas acho que a ênfase maior deva ser dada à educação da criança.

 

Veja também: Afogamentos

 

Drauzio – Uma estatística sobre afogamentos mostrou o contrário do que habitualmente se pensa, uma vez que eles são mais frequentes nos rios, riachos e represas do que no mar. Você acha que esses dados estão corretos?

Dario Birolini – Tenho dados sobre afogamentos, mas não sobre onde eles ocorrem. Portanto, na falta índices concretos sobre o assunto, prefiro não me pronunciar a respeito. Posso dizer, apenas, que afogamento não é uma das causas de morte mais importantes em nosso País.

 

Drauzio – Talvez esses dados indiquem que as pessoas se arriscam menos no mar porque têm mais respeito por ele do que pelos rios e represas.

SEQUELAS

 

Drauzio – Você mencionou que o número de pessoas com sequelas graves depois de um acidente é bem maior do que o número de mortes por traumas. Você poderia estender-se um pouco mais a esse respeito?

Dario Birolini – Numericamente, tudo indica que existam sequelas graves na proporção de mais ou menos três para cada morte. Portanto, multiplicando as 130 mi mortes que ocorrem por ano por traumas – e esse é um valor subestimado – 400 mil pessoas sobreviverão com sequelas por ano, o que é um número gigantesco e absurdo.

Essas sequelas têm uma série de implicações. Uma vítima de atropelamento, ou de outro trauma qualquer, exige recursos no atendimento que implicam despesas muito grandes. Precisa ser transportada para um hospital, onde é operada na maior parte das vezes, vai para a terapia intensiva e permanece muito tempo internada. Se considerarmos que vivemos num país em que se investe em saúde per capita US$ 100 por ano e uma diária na UTI custa o equivalente a US$ 500, dá para entender o desafio que é enfrentar um problema desse tamanho.

Outro aspecto que passa despercebido com frequência é que as sequelas acarretam consequências que vão além do prejuízo da qualidade de vida. Em termos de custo, a fase de reabilitação do traumatizado é das mais dispendiosas para a sociedade. Daí a importância de discutir-se esse tema, especialmente porque envolve vários aspectos pouco analisados.

 

Drauzio – Você poderia citar um exemplo?

Dario Birolini – Quase ninguém pergunta, por exemplo, quantas mortes e sequelas poderiam ser evitadas se a vítima recebesse o atendimento adequado. Embora não tenhamos o levantamento desse dado no Brasil, em outros países onde o problema foi estudado, os números são assustadores, porque evidenciam que de 20% a 50% das mortes poderiam não ter acontecido se a pessoa fosse assistida de forma conveniente. Em outras palavras: se for implantado um sistema que permita atendimento pronto, precoce e eficaz, bem planejado e realizado, será possível diminuir entre 20% e 50% o índice de mortalidade. É uma coisa maluca, pois significa que dezenas de milhares de pessoas poderiam não ter morrido ou podem não morrer, desde que sejam devidamente atendidas.

Obviamente, o problema é complexo. Quando se fala em bom atendimento estamos considerando desde a estrutura física adequada até profissionais treinados para prestar esse serviço.

 

ATENDIMENTO DE LEIGOS

 

Drauzio – Ninguém está livre de precisar socorrer uma pessoa que sofreu um acidente de automóvel, caiu na rua e bateu a cabeça, ou foi atropelada. Quem está em volta, o que deve fazer nesse momento?

Dario Birolini – Essa é uma pergunta muito importante. Eu entendo que, na maioria das vezes, o transeunte ou a pessoa que assiste a uma situação como as que você enumerou não têm qualificações técnicas para prestar qualquer tipo de atendimento. Por isso, precisa estar muito claro dentro de sua cabeça o que deve e o que não deve ser feito.

A primeira providência é lembrar que o local do acidente deve ser sinalizado para evitar que mais alguém se transforme em vítima e para indicar que há um acidentado passando mal no chão. Parar o trânsito ou desviá-lo, pedir para os motoristas reduzirem a velocidade é fundamental para que não ocorra uma sucessão de atropelamentos e colisões naquela hora.

A segunda providência é mobilizar alguém para chamar o resgate e pedir que pessoas qualificadas sejam enviadas ao local para prestar atendimento correto e transportar a vítima com segurança para alguma instituição de saúde. Na cidade de São Paulo, basta discar para 192 ou 193 para ter atendimento imediato.

Terceira providência: como quem está prestando esse tipo de ajuda não tem a qualificação necessária para o atendimento especializado, o melhor que tem a fazer é não fazer nada. Deixar a vítima quietinha no chão, não ajudar a levantar-se nem transportá-la para outro lugar, enquanto se espera a chegada de assistência tecnicamente competente, são recomendações que devem ser seguidas à risca. A única coisa que se pode fazer numa hora dessas, se a pessoa estiver inconsciente e vomitando, é virá-la para evitar que o vômito penetre nas vias aéreas e a sufoque. Às vezes se fala em respiração boca a boca e massagem cardíaca. Isso é bonito de dizer, mas muito complicado fazer. Eu pergunto se você, que é médico, sabe fazer, com certeza, o diagnóstico de parada cardíaca. Eu não sei, e o leigo também não sabe. Além disso, massagear o peito da vítima pode agravar os traumas que já se instalaram.

 

Drauzio – Nesses momentos, é muito importante que alguém assuma a liderança da situação, porque todos em volta começam a dar palpites: vira a cabeça, levanta, põe no carro, estica a perna…

Dario Birolini – Tentando ajudar, as pessoas sugerem exatamente o que não se deve fazer. Pôr no carro, sentar a vítima, bater nas suas costas são intervenções que podem transformar uma lesão parcial em lesão total. É clássico na literatura o caso do indivíduo com coluna fraturada, mas medula preservada que tem os movimentos comprometidos por causa do atendimento errado na hora do acidente. Como se sabe, a medula espinhal é constituída por nervos responsáveis pela sensibilidade e motricidade do corpo. Mexer no acidentado, virá-lo de um lado para o outro desestabiliza a fratura e transforma o indivíduo, que poderia recuperar-se totalmente, num paraplégico ou tetraplégico. Por isso, a ordem é não mexer e esperar alguém qualificado para dar a atenção que o paciente requer naquele momento.

Site
www.sbait.org.br

Veja mais

Sair da versão mobile