Paulo Vanzolini: brilhante na ciência e na música | Entrevista

Compositor dividiu carreira entre a MPB e a biologia, exercendo os dois lados com altíssimo nível. Releia entrevista dada ao dr. Drauzio, de quem foi professor na faculdade de medicina.

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Publicado em: 18 de fevereiro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Paulo Vanzolini estudou medicina, formou-se médico, mas seu interesse nunca foi a Medicina. Escolheu essa área estrategicamente para poder estudar melhor anatomia, fisiologia, patologia. Veja entrevista.

 

Paulo Vanzolini é figura nacionalmente conhecida por seus sambas, alguns dos mais bonitos da música popular brasileira, como “Ronda”, “Volta por cima” e “Praça Clóvis”. Sua verdadeira profissão, porém, pouca gente conhece. Professor Vanzolini é um dos maiores zoólogos do País, uma pessoa que conseguiu equilibrar atividades bem diferentes: compor sambas antológicos e, ao mesmo tempo, desenvolver uma ciência de altíssimo nível.

Fui seu aluno na Faculdade de Medicina da USP, no curso de Estatística, ainda no primeiro ano. Paulo Vanzolini estudou medicina, formou-se médico, mas seu interesse nunca foi a Medicina. Escolheu essa área estrategicamente para poder estudar melhor anatomia, fisiologia, patologia. Mais tarde, foi para Harvard, passou dois anos e meio, tomou contato com os centros científicos mais avançados do mundo e retornou ao Brasil para aplicar seus conhecimentos, em especial, dentro do Museu de Zoologia de USP.

 

ESTUDANTE AVESSO ÀS AULAS

 

Drauzio — Professor, quando você  percebeu essa vocação naturalista?

Paulo Vanzolini — Sempre gostei de bicho, mas não gostava das aulas. No ginásio, eu era muito rebelde. Aliás, para ser mais sincero, nos quatro anos de primário, cinco de ginásio, dois de pré-médico, seis de medicina e três de Harvard, nunca assisti às aulas com gosto.
Meu pai ficava apavorado e me subornava. Então, me prometeu uma bicicleta de presente caso eu entrasse no ginásio numa boa colocação. Ganhei a bicicleta e o primeiro passeio que fiz foi ao Instituto Butantan. Eu tinha dez anos de idade e me apaixonei. Nessa visita ao Butantan, entendi o que  queria na vida. Com catorze anos, quando estava terminando o ginásio, arranjei um estágio no Instituto Biológico. Naquele tempo, havia maior facilidade para os jovens estagiarem em laboratórios. Eles recebiam a gente com boa vontade, sem obrigação nenhuma de  ambas as partes. Lá comecei a profissionalizar-me como zoólogo.

 

Drauzio – O que você fazia no laboratório do Instituto Biológico?
Paulo Vanzolini — Eu era uma espécie de segundo auxiliar de cachorro. Fazia o que me mandavam, mas o que mais me atraía eram os trabalhos sobre a evolução.

 

Drauzio – Como foi esse seu estágio no Instituto Biológico? Quanto tempo durou?

Paulo Vanzolini – Como aprendizagem de Zoologia foi muito ruim. A zoologia que se fazia lá era derivada da de Manguinhos, do Instituto Oswaldo Cruz, a pior zoologia do mundo. Quando fui para Harvard, nos Estados Unidos, me achando o fino, tive um choque cultural tão violento ao descobrir o que era a zoologia moderna, que quase desisti do projeto.

 

Drauzio – Chegou a passar vergonha por lá?

Paulo Vanzolini — Não, vergonha não passei, porque nunca fui muito exibido, mas experimentei sofrimentos morais intensos por me achar tão bom e, na verdade, estar tão mal preparado.

 

ESTUDOU MEDICINA PARA SER ZOÓLOGO

 

Drauzio — Por que foi estudar medicina se o seu interesse era biologia?

Paulo Vanzolini — Meu pai era professor da Escola Politécnica da USP e tinha muitos amigos universitários. Um deles, o professor André Dreyfuss, criador da genética no Brasil e primeiro professor de Biologia Geral da USP, me disse: “Olhe, se você quiser fazer zoologia de vertebrados, vá para a Faculdade de Medicina onde vai estudar anatomia, histologia, embriologia e fisiologia num curso básico de primeiro nível. O resto você rola com a barriga”. Foi o que eu fiz e foi um conselho tão bom que, quando cheguei para fazer pós-graduação nos Estados Unidos, fui dispensado de vários créditos. O professor que me entrevistou para recomendar os cursos de adaptação que eu deveria frequentar, olhou meu histórico escolar  e diante do que leu me perguntou: -“Você fez esses cursos todos?”. Respondi-lhe que sim, que havia cursado a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Onde fica isso?”. Sem ouvir a resposta, foi até a estante, pegou um livro e falou: “Rapaz, isso é classe A”. E eu tive uma redução de metade dos créditos de Harvard por ter frequentado o curso básico na Faculdade de Medicina de São Paulo.

 

Drauzio — Vamos falar primeiro dessa passagem pela Faculdade de Medicina. Fico curioso em saber qual era sua relação com os doentes, quando começou o período de clínica mesmo?

Paulo Vanzolini — Nenhuma, eu não aparecia nas aulas nem no hospital.

 

Drauzio — E como conseguia ser aprovado?

Paulo Vanzolini – Sempre tinha um jeito. Na verdade, onde tem vontade, tem jeito. Quando chegava perto dos exames, eu dormia no Hospital das Clínicas e a turma me dava um cursinho intensivo.

 

Drauzio — Nessa época, levava uma vida boêmia?

Paulo Vanzolini — Não, eu vivia dentro do laboratório de zoologia mesmo. Fui nomeado para o Museu de Zoologia, quando estava no quinto ano de medicina.

 

HARVARD: CHOQUE CULTURAL

 

Drauzio – Logo depois da formatura na Faculdade de Medicina, você foi para Harvard?

Paulo Vanzolini — Não, você não conheceu meu pai. Antes de ir para Harvard, eu já tinha recebido uma oferta de bolsa nos Estados Unidos, mas ele dizia: “Não, você ainda não está maduro. Trabalhe uns dois ou três anos aqui e, quando estiver bem dentro da realidade de sua profissão, você vai.” Por isso, não fui logo para Harvard e não aproveitei a bolsa. Fui mais tarde com dinheiro do meu pai e depois arranjei trabalho. Na época, tinha 24 anos.

 

Drauzio – O que sentiu diante daquelas pessoas e naquele ambiente cientifico?

Paulo Vanzolini — Eu me senti um ignorante de pai e mãe e fiquei desesperado. Tive um choque cultural tão grande que achei que teria de ler dois livros ao mesmo tempo, um com cada olho, para tirar o atraso. Eu não sabia o quanto o País estava atrasado naquela época. Hoje, não, o Brasil tirou o atraso, mas naquele tempo, meu Deus, era uma vergonha.

 

Drauzio — Você falava inglês bem?

Paulo Vanzolini — Quando cheguei, eu lia inglês com perfeição, mas fui comprar cebola e não consegui me fazer entender. Eu falava muito mal, tinha uma pronúncia muito ruim. O dinheiro que levava daria para viver seis meses; depois, teria de arranjar emprego ou uma bolsa. Se não conseguisse, a única solução seria voltar para o Brasil.

 

Drauzio — Qual foi a lição mais marcante dessa  experiência em Harvard, sem dúvida uma das escolas mais importantes dos EUA?

Paulo Vanzolini — Eu aprendi que o cientista, em primeiro lugar, tem de ser generoso. Não é importante ser o dono da ideia. O importante é que a ideia esteja à disposição de todo o mundo. Se tenho uma coleção, tenho obrigação de compartilhá-la com quem dela precisa. Se tenho uma biblioteca, meu desejo é compartilhar os livros. Isso aprendi nos Estados Unidos, com a generosidade cultural do americano.

 

Drauzio – Talvez essa seja uma das razões do sucesso científico americano, não é?

Paulo Vanzolini — É por isso que todo o mundo quer ir para lá. Eles têm outra cabeça. É difícil você entender o processo sem experimentá-lo pessoalmente. A política mais inteligente é, de fato, a da generosidade. Você tem que dar e tem que pedir. Se eu citar um bicho raro, dou para quem precisar. A melhor troca depende do melhor uso que esse bicho possa ter. Se tenho um livro importante, ponho à disposição o xerox para todo o mundo. A escola científica europeia é baseada na pequena vantagem, na mesquinharia, o que a faz muito diferente da maneira de pensar do americano.

 

PAIXÃO PELO EVOLUCIONISMO

 

Drauzio – Quando surgiu seu interesse pela evolução e que impacto ela teve em sua carreira profissional, especificamente na área da zoologia?

Paulo Vanzolini — Desde quando me interessei por zoologia, interessei-me por evolução. Você pode entender a evolução por diversos aspectos. Eu quis estudar a origem das espécies tropicais. Era um assunto com o qual pouca gente lidava. Eu tinha a vantagem de ter uma formação estatística razoável e fiz trabalhos que se destacaram. Além disso, contei com uma ajuda preciosa. Em São Paulo, existe uma escola de Geomorfologia como não há outra no mundo. Nós temos um geomorfólogo chamado Aziz Nacib Ab’Saber, que é um gênio. Ele abriu minha cabeça, me ensinou muito. Meu trabalho mais conhecido, o modelo de refúgios, fundamentou-se nas descobertas de Aziz sobre os paleoclimas, porque o clima do mundo, e principalmente do Brasil e da América do Sul, variou rápida e extremamente. Só para ter uma ideia, onde hoje é a Amazônia, há algum tempo existia caatinga e cerrado. Do ponto de vista do que faço, essa teoria foi de uma importância ímpar, em especial para o desenvolvimento da teoria dos refúgios.

 

Drauzio — Esses conceitos são fundamentais, porque as espécies se diversificam quando ficam isoladas e  param de trocar os genes, que começam a seguir por um rio sem afluentes. Essa visão é uma coisa muito recente, não é? Jamais se imaginou que para conhecer Zoologia ou Biologia fosse necessário conhecer Geomorfologia.

Paulo Vanzolini — Quando voltei dos Estados Unidos com essas ideias, era chamado de pretensioso, de fosfórico, de besta e de mentiroso pelos zoólogos brasileiros. Porque a zoologia, naquele tempo, servia para identificar bicho, botar nome no bicho. Por isso, tinha tanto amador no ramo. A zoologia brasileira era uma coleção de selos.

 

ZOÓLOGO: UM COLETOR ITINERANTE

 

Drauzio — Nos seus trabalhos de campo, você viajou pelo Brasil todo?

Paulo Vanzolini — A grande vantagem do zoólogo é essa, viajar pelo Brasil e pelo exterior sem gastar nada. No nosso trabalho, é importante que você veja os lugares. Por isso percorri onze mil quilômetros de rios na Amazônia.

 

Drauzio – Qual a finalidade dessas viagens?

Paulo Vanzolini — Fazer coleção de bichos. Quando assumi o trabalho no Museu de Zoologia, a coleção de répteis e anfíbios tinha 1.200 exemplares. Hoje tem 220 mil. É a quinta ou sexta do mundo. Muitos animais foram trazidos por alunos, outros foram comprados. Por exemplo, cheguei a comprar dez mil répteis de um colecionador do Chile. Isso nos ajudou a possuir uma coleção de animais chilenos perfeita.

 

Drauzio — Em que lugares esteve na Amazônia?

Paulo Vanzolini – Visitei a Amazônia inteira, a peruana, a equatoriana e a brasileira, de barco. Parava o barco, descia, conversava com as pessoas do lugar e me oferecia para comprar bicho.

 

Drauzio — Comprar como?

Paulo Vanzolini – Chegava e dizia ao povo: “Estou comprando lagartixa, sapinho, cobrinha!”. O preço variava de uma região para outra. Essa era uma boa estratégia, porque permitia ser bem recebido pela população local. Você compra honradamente, conversa com a turma que indica as picadas e acompanha a gente.

 

Drauzio — Vocês coletavam pessoalmente os animais?

Paulo Vanzolini — Lógico, os melhores coletores somos nós, porque sabemos o que queremos e temos prática em coletar. É preciso saber pegar o animal sem machucá-lo.

 

Drauzio — Quantos exemplares você coletou?

Paulo Vanzolini – Nunca me interessei em saber esse dado. Na verdade, não sou um bom coletor. Mesmo assim, talvez tenha conseguido uns dez mil exemplares.

 

Drauzio — Dessas expedições participavam apenas zoólogos ou iam outras pessoas também?

Paulo Vanzolini — O ideal seria uma expedição multidisciplinar, mas é muito difícil organizá-la. Então, ia sempre um grupo de zoólogos, um artista plástico, um economista, uma pessoa de interesse geral para dar-lhes uma chance de entrar na Amazônia e ver nosso trabalho.

 

Drauzio – A Amazônia foi a região que vocês mais frequentaram?

Paulo Vanzolini — Não, nós percorremos o Brasil inteiro. Eu descrevi os répteis das caatingas e para fazê-lo fiquei nove anos andando por elas. Conheço o nordeste como o fundo do meu bolso.

 

DIVERSIDADE ANIMAL E TEORIA DOS REFÚGIOS

 

Drauzio — Qual a razão para a grande diversidade animal existente no Brasil?

Paulo Vanzolini — É a sucessão de climas extremados. Quando o clima torna-se muito seco, a mata vai embora, mas restam refúgios de mata, cada um servindo de habitat para uma espécie. Quando o tempo se torna muito úmido, formam-se refúgios de cerrado ou de caatinga e o resultado é o surgimento de espécies diferentes. Esse jogo do clima indo e voltando e da vegetação acompanhando o clima é a origem dessa biodiversidade espantosa que existe.

 

Drauzio – A variação do clima provoca a variação do habitat e as espécies que ficam restritas ao habitat reduzido se diferenciam e acabam formando novas espécies, estou certo?

Paulo Vanzolini – Certíssimo. As espécies de mata são criadas no tempo seco e, quando predomina o tempo úmido, é a vez das espécies do cerrado se diferenciarem. Suponha que, em determinado momento, a mata amazônica tenha crescido e se espalhado pelo Brasil Central inteiro. Em alguns lugares, porém,  sobraram manchas de cerrado ou de caatinga. Do mesmo modo, quando o clima seco predomina, resta uma mancha de floresta. As espécies se diferenciam quando ocorre essa redução do espaço provocada por alterações no clima. Cada uma dessas formações aprisiona os animais em seu interior que seguem fiéis à sua ecologia. E, por ficarem presos e não se misturarem com outras espécies, eles se diferenciam no melhor estilo darwiniano.

 

DARWIN: A HISTÓRIA DE UM BIÓLOGO

 

Drauzio – Professor, vamos falar um pouco sobre Charles Darwin, o nome mais importante para quem estuda as ciências naturais.

Paulo Vanzolini — Charles Darwin pertencia à classe alta inglesa. Não precisava trabalhar. Ele sempre gostou de história natural e, ainda jovem, conseguiu emprego numa das inúmeras expedições originárias da Inglaterra que se dirigiam para todos os cantos do Novo Mundo à procura de riquezas e de rotas comerciais, mas que geraram muito conhecimento e aguçaram a curiosidade dos cientistas. Darwin veio como naturalista em uma expedição cujo objetivo era fazer um levantamento da costa da América do Sul e de parte do Pacífico. Para se ter noção do estágio da ciência daquela época, eram os zoólogos que estudavam os crânios dos índios e não os antropólogos. Para eles, índio era bicho mesmo.

Darwin parou aqui no Brasil e não gostou. Não gostou do povo brasileiro. Gostou muito do gaúcho argentino. Quando mencionamos essas expedições, costumamos lembrar apenas de Galápagos, mas Darwin observou muita coisa interessante nessa viagem. Na Patagônia e no Uruguai, por exemplo, encontrou fósseis importantíssimos para a elaboração da Teoria da Seleção Natural. Principalmente fósseis de tatus gigantes. Em Galápagos, porém, deparou-se com aquele grande cenário intrigante: inúmeras ilhas, que apresentavam flora e fauna distintas e tinham origem independente no fundo do mar. Essa imagem ficou definitivamente ligada à obra de Darwin.

 

Drauzio – Como foi o trajeto de Darwin até a definição da Teoria da Seleção Natural?

Paulo Vanzolini — Darwin era um gênio, porque foi o primeiro a enxergar claramente algo  de que ainda ninguém se apercebera. Lembre-se de que não havia a menor noção de genética naquele tempo. Seus cadernos de anotações são uma loucura! Ele não emitia nenhuma opinião sem ter mil documentações que a comprovassem. Por isso, levou tantos anos para construir sua teoria. Simultaneamente, porém, ia desenvolvendo um trabalho comum de zoólogo. Um trabalho sobre cracas, aqueles pequenos mariscos marinhos que se fixam nas rochas e objetos flutuantes.

Ele percebeu, também, a importância dos animais domésticos como modelo de evolução, porque com eles a seleção é acelerada. A seleção na natureza é lenta, mas, quando um criador mata dez animais para selecionar um, está acelerando todo o processo. Apenas aqueles que permanecem vivos transmitem seus genes. Esse interesse levou Darwin a trocar extensa correspondência com criadores de pombo, tornando-se grande conhecedor de raças de pombo.

 

DARWIN E LAMARCK

 

Drauzio – Qual sua visão a respeito de Lamarck e sua influência no trabalho de Darwin?

Paulo Vanzolini — Lamarck foi um naturalista injustiçado. Suas experiências cortando o rabo dos ratos e constatando que os filhotes continuavam nascendo com rabo, comprometeram sua reputação.

Lamarck defendia que o desuso de um órgão acabava levando-o à atrofia, mas que, se fosse estimulado, desenvolveria características que seriam transmitidas às gerações futuras. Para sermos mais claros, vamos analisar o que acontece com os órgãos vestigiais. Os peixes que nascem em cavernas escuras praticamente não enxergam. Essa perda dos órgãos rudimentares pedia uma explicação que, com o tempo, a genética se encarregou de oferecer. Sabe-se, hoje, que para manter algo complicado como o olho em funcionamento são necessários inúmeros genes. Se algum deles fracassa, a probabilidade de o bicho morrer é grande e, nesse caso, o gene defeituoso será descartado. Isso é a seleção natural. Agora, o bicho sobrevivendo, porque ter ou não ter olho não faz  a menor diferença, os defeitos se acumulam de uma geração para a outra e provocam mutações deletérias permanentes. Na época, Lamarck chegou à única conclusão que a ausência de conhecimento genético  permitia: o desuso explicava esse tipo de fenômeno.

Darwin era lamarckiano e, mesmo depois de “A origem das espécies”, repetia os ensinamentos de Lamarck.

 

Drauzio – Se, ao nascer, uma criança tiver um dos olhos ocluídos, 30 dias depois estará cega definitivamente porque os genes responsáveis pela visão não foram ativados. Essa característica pode ser transmitida a seus descendentes?

Paulo Vanzolini – Não, porque essa criança sofreu uma perturbação externa durante o período de desenvolvimento e, desde que a oclusão não se repita em seus descendentes, estes enxergarão normalmente, pois os genes que pais e filhos carregam não são defeituosos como os dos peixes das cavernas.

 

IMPACTO DA TEORIA DARWINIANA

 

Drauzio – Qual o impacto da teoria de Darwin na época de sua publicação?

Paulo Vanzolini – A teoria estava madura para acontecer a qualquer momento. Só faltava alguém capaz de reunir tanta documentação e argumentar com a propriedade que Darwin fez. A edição do livro “A origem das espécies” esgotou-se em um dia e agrediu profundamente todos os conservadores. Esse, aliás, era o drama pessoal de Darwin do qual só tomamos conhecimento pelos diários que deixou.
Darwin era um conservador que chegou a uma ideia revolucionária. Ter seguido em frente representou uma tremenda honestidade com o próprio pensamento e com a ciência. Acho que, se pudesse, teria desistido.

 

Drauzio – Darwin era filho de pastor protestante e neto de um biólogo. Sobre o impacto de suas idéias, é preciso explicar que, na época em que “A Origem das Espécies” foi publicado, em 1854, a ciência acreditava que todas as espécies teriam sido criadas, num único dia, por Deus. Além disso, por incrível que pareça, acreditava-se que a Terra tinha apenas seis mil anos (hoje sabemos que tem quatro bilhões e meio de anos).

Paulo Vanzolini – Para se ter uma ideia do panorama científico da época, o primeiro grande paleontólogo, Crivillier, uma geração antes de Darwin, quando via uma sequência de fósseis, acreditava que, num determinado momento, Deus matava todos os animais e os substituía por outros, criando uma geração melhor e mais evoluída. Essa teoria foi chamada de catastrofismo.

 

DARWIN E WALLACE

 

Drauzio — Voltando a Darwin, há quem diga que ele se apropriou de algumas ideias de Alfred Wallace, um outro biólogo inglês. É verdade?

Paulo Vanzolini — Não, isso é pura maluquice. Wallace era colecionador profissional. Em suas viagens, conseguia bichos que levava para compor a coleção do museu e chegou a conclusões semelhantes às de Darwin, vivendo a milhares de quilômetros de distância um do outro. O pensamento dos dois convergiu na mesma direção por uma dessas coincidências inexplicáveis da vida. Quando Wallace mandou seu artigo para ser publicado na Inglaterra, um editor, que conhecia Darwin, ficou surpreso – “Meu Deus do céu! Os dois estão na mesma!” -, mostrou a Darwin o trabalho e os dois decidiram publicar juntos o que haviam escrito. A teoria de Darwin  já estava pronta, quando soube das ideias que Wallace defendia.

Muitos preconizam que o certo seria falar em Teoria da Seleção Natural de Wallace e Darwin. No entanto, é preciso considerar que a documentação de Darwin é imensa e que ele escrevia muito bem. Wallace fez apenas um artigo; Darwin, um livro. Sou grande fã do Wallace, mas não se pode negar o valor da contribuição de Darwin.

 

Drauzio — O embasamento científico da teoria veio de Darwin?

Paulo Vanzolini – Não veio só de Darwin, veio de Wallace também, pois a experiência dos dois foi praticamente a mesma e colaborou para confirmar uma regra básica em zoologia. O zoólogo tem que ir para o mato. Em casa você não vê nada, só vê a cara da sua mulher. Se quiser ver bicho, tem de ir para o mato.

 

CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA

 

Drauzio — Na metade do século passado, os museus britânicos já estavam cheios de fósseis. Todos viam que os fósseis do passado eram parecidos com animais existentes no presente. Parecidos, mas não iguais. Estabelecia-se, com isso, uma relação, mas ninguém sabia explicar como aqueles animais tinham desaparecido e por que  eram parecidos com os que sobreviveram. Alguns acreditavam que Deus, periodicamente, extinguia a todos. Charles Darwin, porém,  teve uma ideia inovadora: esses animais competiram entre si e, por um processo de seleção natural, os mais aptos sobreviveram. Partiu, então, em busca de elementos para comprovar sua hipótese e acabou fazendo uma grande demonstração científica. Algo semelhante ao que fez Newton, por exemplo, vendo cair uma maçã na terra. Desde que o mundo existe, as maçãs caem das árvores, mas ele encarou aquela realidade de outra forma: “Não é a maçã que cai sobre a Terra, é a Terra que atrai a maçã através de uma força, a força da gravidade”. Agindo, assim, esses homens conseguiram descobrir leis universais. O que é isso, essa criatividade de pensar uma teoria e, depois, ter a disciplina de demonstrá-la na prática?

Paulo Vanzolini — Pensar a teoria é um ato social. Ninguém criado no isolamento consegue construir uma teoria. O ambiente científico vai evoluindo aos poucos e instigando as ideias a amadurecer. Darwin retratou as indagações e preocupações de seu tempo. Ele foi o gênio a quem coube documentá-la, formulá-la. Porque uma coisa é enxergar e outra é formular. Principalmente, como diz  Karl Popper, formular de uma maneira que possa ser falsificada, que possa ser contradita, que possa ser examinada criticamente. Quem leu não “A Origem das Espécies”, mas leu outros livros de Darwin, como “Evolução em animais e plantas de domesticação”, verifica a fantástica quantidade de dados  interpretados corretamente e obedecendo a uma disciplina mental fabulosa. O homem era um gênio, mas o fenômeno é social e, como as ideias amadurecem dentro do ambiente científico, é importante estar num grande centro.

 

Drauzio — Além de estar num grande centro, é preciso desenvolver um método de trabalho. Se Darwin tivesse permanecido no campo das ideias, nada teria acrescentado ao conhecimento científico. Para mim, o mais interessante de sua obra é o que vale para explicar o aparecimento do homem na Terra, com um ancestral comum ao dos primatas e como apareceram as árvores, os carvalhos, as sequoias. O mais curioso é que, quando se estudam os mecanismos celulares, quanto mais se aprofunda na dissecação desses mecanismos, mais se verifica que o mesmo princípio pode ser aplicado.

Paulo Vanzolini — É um fenômeno estatístico. Você precisa de muitas combinações possíveis para poder selecionar uma que dê realmente certo.

 

Drauzio — Isso tem repercussões não são só morfológicas,  mas explica grande parte do nosso comportamento, não é mesmo?

Paulo Vanzolini — Há genes que aparecem tanto nas drosófilas como nós homens. Genes conservados durante todo processo evolutivo. Por exemplo, tem bilhões de anos o gene comum aos homens e às drosófilas que indica o lado do organismo em que se desenvolverá a cabeça ou o rabo.

 

Drauzio — Esse caminho é absolutamente imprevisível?

Paulo Vanzolini – Não totalmente. No geral, pode-se saber quais necessidades serão atendidas, pois onde surge uma necessidade  expressiva, eventualmente, ela será atendida. Por exemplo, vamos considerar aves vivendo em ambientes com grande diversidade de comida: insetos, frutas, sementes, etc. Não existem aves que comam de tudo, por isso elas constituirão grupos que se especializarão em consumir determinado tipo de alimento. Haverá aves insetívoras, granívoras,frugíveras e até carnívoras. Isso se chama radiação, ou seja, cada grupo se diferencia seguindo direções ecológicas distintas. De acordo com esse ponto de vista, é possível prever que nichos serão ocupados, pois onde houver um nicho vazio,  sempre haverá alguém para ocupá-lo. Mais do que isso, seria uma temeridade afirmar.

 

TEORIA DA EVOLUÇÃO

 

Drauzio – Em relação à teoria de Darwin, acho o nome Teoria da Evolução absolutamente impróprio, porque passa a ideia de que a vida surgiu na Terra para evoluir num determinado sentido, visto pela espécie humana, como se toda a evolução tivesse caminhado para o aparecimento do homem, o ser mais desenvolvido na face da Terra.

Paulo Vanzolini — Isso é uma posição filosófica, consciente ou inconsciente, muito comum. A ideia de progresso subentende que existe avanço, desenvolvimento e que tudo caminha para a frente. Agora, que o homem é um bicho diferente, ele é. Porque quem foi à Lua, não foi o morcego, nem o macaco, fomos nós mesmos, os homens. Então, é desculpável que se fale em progresso. E tem outra coisa, também pensando filosoficamente (desde que um ignorante possa pensar filosoficamente): toda vida animal é baseada no egoísmo. O único animal que tentou, pelo menos da boca para fora, vencer o egoísmo, foi o homem. Bicho nenhum pede licença para comer o outro, para comer o irmão ou matar o filho. O único que tem senso ético é o homem.  Sob tal ponto de vista, se achamos que isso seja um aperfeiçoamento, ele existiu na escala evolutiva, sem dúvida.

Drauzio —  Se esse aperfeiçoamento é evolutivo e caminha para melhor, como explicar que os chimpanzés tenham aparecido na Terra 2 milhões de anos depois do homem?

Paulo Vanzolini – Quem acha que o homem veio do chimpanzé está redondamente enganado. Ambos surgiram de um ancestral comum a muitas outras espécies mais recentes até e menos evoluídas. Na escala evolutiva, nem sempre ser mais novo significa ser melhor ou mais desenvolvido.

 

Drauzio — E para onde você acha que a vida na Terra vai? O senhor é catastrofista? Acha que o homem vai destruir o habitat da grande maioria das espécies?

Paulo Vanzolini – Já está destruindo, não é verdade? Veja essa lei que os madeireiros estão defendendo, uma lei para meter o machado na mata. Se aprovada, 50% da floresta amazônica pode ser destruída. Se estamos tão mal impressionados com o 7% de desmatamento que a região já sofreu, imagine se chegar aos 50%.  A essa altura, a situação pode ter ficado tão ruim que o homem seja obrigado, de algum jeito, a parar e a voltar atrás. Agora, se ele vai tomar consciência do estrago que causou e se o processo será reversível,  não há como predizer.

DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E GENÉTICA

 

Drauzio — Professor, por ter acompanhado o desenvolvimento científico em toda a segunda metade do século XX, para onde acha que a ciência caminha?

Paulo Vanzolini — A ciência biológica vai por um caminho só, o da medicina, porque os estudos hoje se concentram na pesquisa de moléstias genéticas. É a biotecnologia empenhada em identificar e curar doenças geneticamente causadas. Todos os talentos se afunilam nessa direção e todo o dinheiro está investido nisso. Um grande defeito do sistema capitalista é que a iniciativa privada tem muito peso nessas pesquisas e as coisas ficam caras, ficam difíceis. Cada vez que compro remédio, penso: “E se eu fosse pobre, como me arranjaria?”.
Não se pode negar, porém, que se trata de uma aventura intelectual muito bonita, nem sempre explorada honestamente. De qualquer forma, à medida que o conhecimento avança, a expectativa de vida aumenta e, às vezes, me flagro perguntando quando começar a não morrer mais ninguém, onde vamos pôr tanta gente?

 

Drauzio — Do ponto de vista do cientista, essa revolução da genética atual não torna mais interessante trabalhar com os genes, com os mecanismos de criação da vida, do que com as consequências desses mecanismos?

Paulo Vanzolini — Todo tipo de problema pode ser bonito. Eu sou apaixonado pelo meu trabalho e se você for lá me observar trabalhando, não conseguirá entender  por quê. No momento, fico horas no computador fazendo a média das escamas de cascavel para ver se a distribuição geográfica desses bichos relaciona-se, de alguma forma, com a evolução da espécie humana.

CIENTISTA DE UNHAS SUJAS

 

Drauzio – A meu ver, isso é uma coisa interessante na carreira do cientista.  Por que, primeiro, ele precisa ser ousado para pensar a realidade de forma original. Segundo, porque precisa mergulhar num trabalho metodológico e metódico, não é?

Paulo Vanzolini – É, meu amigo… Mas eu tenho que passar por uma rotina impiedosa e dura sem a qual não se pode chegar a lugar nenhum. Como fazer as coisas sem serviço, não conheço a receita. Uma vez, recebi um elogio (considero um elogio, embora a intenção não fosse essa) de um grande amigo, professor em Harvard. Ele dava lá o curso que eu dava aqui, na Faculdade de Filosofia, e pediu a minha distribuição de aulas. Mandei-lhe, ele a mostrou aos alunos e comentou: “Isso é zoologia de unha suja!”. Sem querer, foi o melhor elogio que me poderia ter feito. Eu me orgulho das minhas unhas sujas de zoólogo!

 

Drauzio – Que conselho daria aos novos cientistas, essa garotada que está começando agora?

Paulo Vanzolini — O primeiro conselho é que não sigam os conselhos de ninguém e que se apliquem e façam bem feito e com amor o seu serviço.

 

Drauzio – Seguiria  esse conselho se você tivesse que começar de novo? E a área escolhida seria a mesma?

Paulo Vanzolini – Seria difícil evitar o conselho. Quanto à área, meu amigo, tenho mais de 70 anos, estou aposentado e, com exceção dos domingos, quando vejo futebol pela TV, vou todos os dias ao Museu de Zoologia das 8:30h às 19h. Não vou atrás de dinheiro nem de fama. Vou por amor ao que faço.

 

Drauzio – Como se explica que algumas pessoas pareçam predestinadas a abraçar determinadas profissões?

Paulo Vanzolini — Para mim, elas o fazem por senso estético, porque acham bonito e por vaidade. Se alguém disser que faz ciência para promover o conhecimento ou o bem da humanidade, bota esse sujeito de quarentena. Ele faz porque gosta, porque  assim se realiza.

VIDA DE COMPOSITOR

 

Drauzio – E  para a música, ainda sobra algum tempo?

Paulo Vanzolini – Foi nos shows da Faculdade de Medicina que comecei a fazer música. Parei faz uns 15 anos. Acabou a vontade, o combustível. Houve uma época em que todas as noites ia ao Jogral, o bar mais importante de São Paulo naquele tempo, e que pertencia ao Luís Carlos Paraná, um amigo muito querido. Ali se tocava música de qualidade excepcional. Se o garçom faltava, punha a jaquetinha dele e servia as mesas. Hoje, não tenho mais fôlego para isso e o fato é que perdeu a graça.
Com alguns de meus amigos, o Paulinho Nogueira, por exemplo, ainda me encontro para bater papo e ouvir música. Outros já foram embora e me sobrou a sensação terrível de perda pessoal. Sem eles, diminuí, fiquei menor.  Em relação à música, o entusiasmo desapareceu em parte, porque não tenho mais para quem mostrá-la.

 

Drauzio – Mas muita gente ainda gostaria muito de ouvir suas novas composições?

Paulo Vanzolini — Não seria a mesma coisa. Estariam faltando os antigos e insubstituíveis companheiros.

 

Drauzio – Olhando para trás, para sua vida de músico e de cientista, você é um homem feliz?

Paulo Vanzolini – Sou um homem em paz. Feliz? Não sei  qual foi o filósofo, se Sólon ou Thales, que disse só ser possível julgar se uma pessoa foi feliz ou não, depois de sua morte, porque é imprescindível ter uma morte feliz também.

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