Pancreatite (inflamação do pâncreas) | Entrevista
O álcool é de todas a principal causa da pancreatite, que pode ser aguda ou crônica. O tratamento deve ser imediato, pois a condição aguda pode ser fatal.
Publicado em: 5 de setembro de 2011
Revisado em: 10 de maio de 2021
O álcool é a principal causa da pancreatite, uma inflamação do pâncreas. Poucas doses diárias de destilados e três latinhas de cerveja podem causar danos irreversíveis ao pâncreas. Veja entrevista sobre pancreatite.
O pâncreas é uma glândula em forma de gancho situada na parte superior do abdômen, atrás do estômago (imagem 1). Constituído por três segmentos, o corpo, a cabeça e a cauda, está em
Em verde na imagem 2 abaixo, pode ser vista a vesícula biliar onde é armazenada a bile produzida no fígado e transportada através dos ductos hepáticos, que se juntam ao canal cístico da vesícula para formar o colédoco. Do pâncreas sai um canal, o ducto pancreático, que desemboca junto com o colédoco no intestino delgado, levando secreções que vão atuar na digestão e absorção dos alimentos. Além dessa função, o pâncreas tem também a de produzir hormônios, entre eles a insulina e o glucagon, reguladores do metabolismo da glicose.
Veja também: Câncer de pâncreas
FUNÇÃO DO PÂNCREAS
Drauzio – Quais são as funções do pâncreas?
José Eduardo Monteiro da Cunha – O pâncreas têm duas funções: a função exócrina, ou seja, a de produzir enzimas que auxiliam a digestão especialmente das gorduras e proteínas, e a função endócrina, isto é, a de produzir hormônios, principalmente a insulina, responsável pela manutenção do metabolismo da glicose. A falta desse hormônio provoca déficit na metabolização da glicose e, consequentemente, diabetes.
Drauzio – Podemos dizer, então, que o pâncreas produz dois tipos de substâncias: os hormônios, que joga na circulação sanguínea e vão agir à distância, e as enzimas que são lançadas dentro do intestino para auxiliar a digestão.
José Eduardo Monteiro da Cunha – Exatamente. São essas as funções endócrina e exócrina do pâncreas.
CARACTERÍSTICAS E SINTOMAS
Drauzio – O que é a pancreatite?
José Eduardo Monteiro da Cunha – Como o sufixo “ite” indica, pancreatite é a inflamação do pâncreas, que pode ser de dois tipos: aguda, ou pancreatite aguda, e crônica, ou pancreatite crônica.
Drauzio – Qual a diferença clínica entre uma e outra?
José Eduardo Monteiro da Cunha – A pancreatite aguda caracteriza-se por um processo inflamatório intenso que provoca aumento da glândula por causa do edema, ou seja, do acúmulo de líquido. O principal sintoma é dor abdominal intensa, quase sempre de início abrupto. Parece que é a segunda dor mais forte que alguém pode sentir.
Os livros falam em dor em cólica, mas não é exatamente assim. É uma dor de forte intensidade, contínua e persistente, que dura horas ou dias, localizada na parte alta do abdômen e que se irradia para a região dorsal, na altura do epigástrio. Geralmente, ela se espalha como se fosse um cinto para os dois hipocôndrios, isto é, para o lado direito e para o lado esquerdo.
A principal causa da pancreatite crônica é o alcoolismo. O
Dor também é um sintoma importante na pancreatite crônica. Embora a localização seja a mesma, ou seja, na região epigástrica e também se irradie para o dorso, ela dura mais tempo e seu início é menos súbito do que na forma aguda da doença. De qualquer modo, é uma dor tão forte que, para controlá-la, os doentes lançam mão de analgésicos potentes e até do uso de drogas ilícitas. Quando o indivíduo é etilista e tem propensão para desenvolver dependência de drogas, esse recurso para controlar a dor pode reverter-se num problema social muito grave.
PANCREATITE AGUDA
Drauzio – Quais são as causas da pancreatite aguda?
José Eduardo M. da Cunha – A principal causa de pancreatite aguda é a formação de cálculos biliares (pedra na vesícula), especialmente de cálculos pequenos (os grandes não criam tanto problema), que migram pelos canais que comunicam a vesícula com o colédoco. Se um desses cálculos ficar preso na porção terminal do colédoco junto ao ducto pancreático e provocar uma obstrução, o pâncreas inflama porque não consegue dar vazão às secreções exócrinas que deveriam ser lançadas no intestino.
Muitas vezes, esses cálculos da vesícula biliar são assintomáticos e sua presença é descoberta acidentalmente quando, por qualquer outra razão, a pessoa passa por um check-up, por exemplo. Feito o diagnóstico, porém, o melhor é retirá-los cirurgicamente para evitar uma crise de pancreatite aguda.
Drauzio – Não deve ser fácil convencer uma pessoa que não sente nada a ser operada para retirar esses cálculos biliares.
José Eduardo Monteiro da Cunha – É difícil, mas é o que deve ser feito.
Drauzio – Qual é a evolução da pancreatite aguda?
José Eduardo Monteiro da Cunha – A maior parte dos doentes, 80%, tem evolução favorável e o problema está resolvido depois de três, quatro, cinco dias, uma semana no máximo de internação hospitalar, uma vez que não dá para tratar a pancreatite em casa.
Drauzio – Você disse que a dor da pancreatite aguda é em faixa, no abdômen superior, com irradiação para as costas. Eventualmente é muito forte, uma das piores do organismo. Existem outros sintomas?
José Eduardo Monteiro da Cunha – Náuseas e vômitos associados à dor são outros sintomas da pancreatite. Se houver obstrução do canal da vesícula e do canal do pâncreas, será interrompida a passagem das secreções pancreáticas lançadas no intestino. Isso dificultará o caminho da bile, que vai parar no sangue e provoca icterícia, que não é intensa nem se manifesta em todos os casos de pancreatite. Às vezes, só o médico percebe a coloração amarelada dos olhos e da pele do doente no exame clínico.
Drauzio – A primeira causa de pancreatite aguda é o cálculo biliar. E a segunda?
José Eduardo Monteiro da Cunha – A segunda é o álcool. Existe discussão muito grande a respeito do assunto. Entre os gastroenteronlogistas, há os que acreditam que o álcool só produz a lesão crônica e que os episódios de dor seriam a agudização da pancreatite crônica.
Estudos mais recentes, porém, sugerem que o álcool tem a capacidade de provocar efeitos nocivos sobre o pâncreas que resultam numa pancreatite aguda de natureza alcoólica. Vários surtos de pancreatite aguda alcoólica facilitam o aparecimento de lesões que se cronificam no pâncreas.
Drauzio – Essas duas causas respondem por qual porcentagem das pancreatites agudas?
José Eduardo M. da Cunha – Aproximadamente por 80% dos casos. Os outros 20% são provocados por medicamentos (geralmente os diuréticos, anticonvulsivantes e os imunossupressores usados nos transplantes de órgãos) e pela mordida do escorpião que possui um veneno muito tóxico.
Eu diria que mais frequentes que todas essas, talvez a terceira causa seja as alterações do metabolismo de gordura, isto é, a hiperlipidemia. Por um mecanismo complexo, taxa elevada de gordura no sangue (níveis de triglicérides acima de 400, 500, 700) pode também provocar pancreatite aguda.
PANCREATITE CRÔNICA
Drauzio – Quais são os sinais e sintomas da pancreatite crônica?
José Eduardo Monteiro da Cunha – São três as principais manifestações da pancreatite crônica: dor, diarreia e diabetes. A dor aparece nas fases de agudização da doença e é igual à provocada pela pancreatite aguda. Já a fibrose que vai tomando conta do pâncreas faz com ele perca as funções exócrina e endócrina. A principal consequência do comprometimento da função exócrina é diminuir a produção de lipase, enzima responsável pela digestão de gorduras. Resultado: o paciente apresenta diarreia de intensidade variável, porque não consegue digerir e absorver a gordura contida nos alimentos. Ela é eliminada pelas fezes, que se tornam volumosas, com cheiro muito forte e bóiam no vaso por causa do conteúdo gorduroso.
Do ponto de vista endócrino, embora um pouco mais tardiamente, instala-se o diabetes por causa da diminuição da insulina ou da incapacidade do pâncreas em produzir esse hormônio.
Drauzio – O álcool está envolvido tanto nos casos de pancreatite crônica quanto nos de pancreatite aguda. Deixando de lado outras complicações que ele provoca, qual é a margem de segurança da ingestão de álcool para não desenvolver pancreatites?
José Eduardo M. da Cunha – Quando se fala em álcool, logo se pensa no fígado, mas ele lesa também o pâncreas. Em relação à pancreatite alcoólica aguda, não existem estudos que mostrem qual é o volume necessário para provocar a doença. Sabe-se, porém, que os surtos costumam aparecer depois da ingestão de quantidade grande de álcool, especialmente quando associado à dieta muito gordurosa, que estimula a secreção das enzimas pancreáticas.
No que se refere à pancreatite crônica, os estudos existem e mostram que a mulher é mais sensível ao álcool do que o homem. Nela, a quantidade necessária para produzir lesão pancreática é de 60 gramas de álcool etílico por dia, em tempo prolongado. No homem, é de 80 gramas. Se lembrarmos que a cerveja tem 5%, 6% de álcool, 60 gramas correspondem a quatro latinhas de 300 ml, 330 ml.
Drauzio – Portanto, na mulher, a ingestão de três ou quatro latinhas de cerveja por dia e, no homem, quatro ou cinco pode levar à pancreatite crônica…
José Eduardo M da Cunha – Se considerarmos os destilados, a coisa fica mais complicada. Como o aguardente de cana e o uísque têm mais ou menos 50% de álcool etílico puro, três ou quatro doses tomadas continuamente podem lesar o pâncreas e provocar pancreatite crônica.
TRATAMENTO
Drauzio – Como pode ser tratada a pancreatite aguda?
José Eduardo Monteiro da Cunha – Basicamente, o tratamento é clínico e requer internação hospitalar. O doente deve ficar em jejum, com hidratação por soro na veia. Como não existe nenhum medicamento capaz de desinflamar o pâncreas, é preciso deixá-lo em repouso até que a inflamação regrida, o que acontece em 80% dos casos. Os outros 20% evoluem para uma forma grave da doença, com lesão de outros órgãos, como pulmões e fígado, além do pâncreas. Esses doentes podem entrar em choque e têm de ser levados para a unidade de terapia intensiva.
No que se refere especificamente ao pâncreas, a principal complicação é que ele pode necrosar e infectar, o que requer tratamento cirúrgico para a retirada desse material morto, necrosado e infectado.
Drauzio – Isso quer dizer que a pancreatite aguda pode tornar-se uma doença gravíssima?
José Eduardo M. da Cunha – Gravíssima e com mortalidade muito alta. Nos casos mais graves, a mortalidade que era de 1% passa para 60%.
Drauzio – Como é o tratamento da pancreatite crônica?
José Eduardo M. da Cunha – Inicialmente, o tratamento também é clínico. Além do controle da dor, é preciso deixar o pâncreas em repouso, evitando alimentos gordurosos e respeitando uma dieta à base de hidratos de carbono. O uso de analgésicos deve ser prescrito com cuidado, sempre evitando o uso crônico de opioides, o que pode facilitar o desenvolvimento de eventual dependência da droga.
Pacientes com diarreia que apresentam insuficiência exócrina recebem por via oral as enzimas pancreáticas (amilase, lipase etc.) que não produzem. Nos diabéticos, é fundamental o controle do metabolismo da glicose com dieta e, frequentemente, com a administração de hipoglicemiantes por via oral ou, se houver agravamento do quadro, de insulina.
Drauzio – Álcool, nunca mais?
José Eduardo Monteiro da Cunha — O indivíduo que teve pancreatite alcoólica não pode tomar álcool nunca mais, para não agravar o quadro e evitar a progressão da doença. É preciso reforçar que, ao contrário do que ocorre na pancreatite aguda causada por cálculo biliar, em que o pâncreas volta ao normal e não surgem complicações como insuficiência pancreática, nem diabete, na pancreatite crônica, ele está lesado pelo resto da vida. Não só não se recupera mais, como o quadro irá progressivamente piorando, se a pessoa continuar bebendo.