Hormese é um conceito descrito em 1888 pelo farmacologista alemão Hugo Schulz, ao observar que doses baixas de substâncias tóxicas estimulavam o crescimento de certos fungos.
Os flamboyants florescem nesta época do ano.
Em meio à folhagem rendilhada, exibem mil flores em forma de chamas acesas para o alto.
Na avenida Dr. Arnaldo, junto à Cardeal Arcoverde, zona central, pode ser visto um dos flamboyants mais floridos de São Paulo.
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Plantado no jardim da faculdade de Saúde Pública, o mais generoso de seus galhos se curva e cobre de sombra e beleza metade da avenida. Bem embaixo dele, todos os dias, milhares de automóveis e um dos corredores de ônibus mais movimentados da cidade despejam fuligem e gases tóxicos. Impávido, assim que chega o verão, ele revida ao ataque químico com flores encantadoras.
As árvores que teimam em florescer no meio da poluição são exemplos vivos de um fenômeno batizado de hormese, em 1943. Recentemente ressuscitada por uma série de publicações científicas, na verdade, hormese é um conceito descrito em 1888 pelo farmacologista alemão Hugo Schulz, ao observar que doses baixas de substâncias tóxicas estimulavam o crescimento de certos fungos.
Depois de analisar experimentos semelhantes realizados em animais pelo médico alemão Rudolph Arndt, ambos enunciaram a lei de Schulz-Arndt: pequenas doses do que faz mal podem eventualmente fazer bem ao organismo.
Essas ideias caíram em descrédito nas décadas de 1920 e 1930, porque Arndt era adepto da homeopatia que defende a noção segundo a qual soluções extremamente diluídas, contendo algumas poucas ou mesmo nenhuma molécula da substância ativa dissolvida, são dotadas de efeito terapêutico.
A hormese pode alterar substancialmente as regras atuais para definir quantidades mínimas aceitáveis de substâncias tóxicas nos alimentos, na água potável, em produtos industriais e interferir com a limpeza do lixo atômico.
O mal-entendido não tinha a menor razão para surgir: a hormese envolve concentrações, no mínimo, 10 mil a 100 mil vezes maiores do que as homeopáticas. O fenômeno provavelmente representa uma resposta adaptativa ao estresse: na presença deste, o organismo ativaria seus mecanismos de reparação dos tecidos e manutenção da integridade funcional, numa espécie de compensação que o tornaria mais apto a enfrentar a seleção natural. Os exemplos são inúmeros:
- Doses pequenas de álcool reduzem significativamente o risco de ataques cardíacos, enquanto quantidades mais elevadas estão associadas à hipertensão, cirrose hepática e outras doenças graves;
- O exercício físico moderado priva uma parte das células de oxigênio e glicose, aumenta a concentração nefasta de oxidantes em outras e debilita a imunidade. No entanto, melhora as condições gerais de saúde porque essas agressões celulares estimulam o aparelho cardiorrespiratório e os sistemas de defesa a funcionar com mais eficiência;
- Restrição calórica na dieta retarda o envelhecimento e aumenta a longevidade em todos os animais já estudados. O número baixo de calorias ingeridas mantém o organismo sob estresse, ativando enzimas responsáveis pela reparação do DNA e acelerando a morte de células potencialmente malignas (apoptose);
- A dioxina — usada como desfolhante no Vietnã — é produto de alta toxicidade: o equivalente a sete colheres de chá numa piscina olímpica é suficiente para causar câncer de fígado em 50% dos ratos estudados. Doses mínimas de dioxina, ao contrário, protegem ratos contra o aparecimento de tumores hepáticos;
- Os riscos das radiações costumam ser avaliados com base na incidência de câncer entre os 86.600 sobreviventes das explosões atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Nesse grupo, a incidência de câncer cresce à medida que aumentam as doses de radiação às quais foram expostos seus componentes. Estudos recentes, no entanto, sugerem que, entre eles, os menos atingidos pelas radiações curiosamente apresentam maior longevidade do que o grupo controle (não exposto à bomba);
- Pesquisas conduzidas em populações que vivem no oeste da China e no estado americano do Colorado, onde os níveis de radiação natural são três a quatro vezes maiores do que no resto do mundo, demonstraram incidência discretamente diminuída de casos de câncer.
Alguns cientistas acreditam existirem evidências suficientes para assumirmos que radiações abaixo de certo limiar são inofensivas, contrariando o paradigma atual que considera prejudicial à saúde da espécie humana qualquer dose de radiação.
Edward Calabrese e Linda Baldwuin, da Universidade de Massachusetts, fizeram uma revisão de milhares de trabalhos publicados sobre o tema. Foram encontrados exemplos de hormese em plantas que crescem mais rápido na presença de herbicidas, bactérias que se multiplicam mais depressa com antibióticos, células imunológicas que proliferam na presença de arsênico, insetos que vivem mais e produzem mais ovos quando tratados com pesticidas e muitos outros. No final, Calabrese diz: “O fenômeno é encontrado em todas as espécies estudadas nos reinos animal e vegetal”.
Embora ainda haja pontos de vista discordantes e dificuldade na elucidação dos mecanismos moleculares desses fenômenos, o interesse por essa área é palpitante. A hormese pode alterar substancialmente as regras atuais para definir quantidades mínimas aceitáveis de substâncias tóxicas nos alimentos, na água potável, em produtos industriais e interferir com a limpeza do lixo atômico.
Para nós, habituados aos alimentos com conservantes, às bebidas industrializadas, às frutas e legumes borrifados com pesticidas e a viver na poluição, é consolador confiar na hormese.