A vida dos ribeirinhos é penosa, e às vezes o inesperado pode acontecer. Leia na crônica do dr. Drauzio o relato do acontecimento de um milagre no Natal.
Os ribeirinhos mais velhos contam que os padres missionários eram milagreiros.
Subiam o Rio Negro em barcos batizados em homenagem à mais pura das mulheres — Imaculada Conceição, Virgem Maria, Mãe de Misericórdia –, decididos a salvar almas caboclas e indígenas que vivessem apartadas de Deus, às margens dos 1.200 km que o Negro percorre em nosso território, até encontrar as águas barrentas do Solimões.
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Nas comunidades, livravam os pagãos do limbo, casavam quem vivia em pecado, ouviam confissões e administravam extrema-unção para os que batiam às portas do Paraíso.
Traziam facão e linha de pesca para os homens, roupinha de criança, terços de contas coloridas, santinhos piedosos e cortes de chita para a vaidade feminina. Ajuda de pequena monta, recebida com brilho nos olhos pelo povo.
Foi nas comunidades indígenas mais remotas que os missionários angariaram a reputação transcendental. Suas orações faziam chover, o rio dar peixe, o enfermo levantar da rede, o parto chegar a termo.
Para convencer os recalcitrantes a decorar as preces e a repeti-las antes de deitar, reuniam os indígenas no fim do dia para lhes comunicar que, se o rezassem com fervor, talvez a mão divina ordenasse chover feijão. Que não esquecessem de deixar as bacias do lado de fora!
Ao amanhecer, glória a Deus nas alturas.
No dia seguinte, caso a reza fosse proferida com mais humildade e extrema devoção, quem sabe o Senhor inundaria as bacias com farinha de mandioca, para combinar à mesa com o feijão chovido na véspera.
Cruzou para a outra margem ao anoitecer. Mal aportou a canoa, escutou a algazarra alegre das crianças vinda da casa. Pelas frestas da madeira, bruxuleava a luz da lamparina.
Foi nesses tempos que dona Maria das Dores assistiu ao feito que a convenceu da santidade dos missionários. Dona Maria tem o rosto em pergaminho, cabelo amarrado num birote atrás da cabeça, a sola dos pés grossa e o cantado da língua dos tucanos ao falar português. Os olhos em jabuticaba irradiam experiência e sabedoria. É daquelas senhoras que qualquer um gostaria de ter por perto nos momentos de angústia.
Aconteceu num 24 de dezembro em que o mundo em polvorosa comprava todo o látex que os seringueiros conseguiam extrair. Ela tinha um filho com 3 anos, outro com 2, criados ao ar livre, mas sob vigilância contínua da mãe para não passarem o dia submersos no rio, que chegava ao pé da casa.
Naquela tarde, com o marido venezuelano embrenhado num seringal 18 horas rio acima, enfrentou o dilema de assistir à missa de Natal que os missionários recém-chegados celebrariam na comunidade, a meia hora de remo, ou de ficar em casa com os filhos.
Vizinhos não havia. Com a ameaça de chuva e as águas revoltas, levar os dois na canoa, não tinha coragem.
A fé prevaleceu sobre o instinto materno. Às 4 da tarde, serviu mingau de açaí com farinha para os dois, mudou de roupa, trancou as janelas, acendeu a lamparina e recomendou que em hipótese alguma se aproximassem do rio. Caso a contrariassem, cairiam nas garras do Mapinguari, preguiça gigante que agarra crianças desobedientes para devorar-lhes o cérebro.
A travessia foi penosa contra a correnteza.
A comunidade de casas de madeira alinhadas num promontório atrás da curva do rio estava engalanada; a igrejinha adornada com bandeirinhas coloridas e folhas de palmeira. Os homens vestiam camisa social e calça comprida; as mulheres de vestido moviam-se desajeitadas sobre os sapatos.
Quando se aproximou da igreja, em meio aos cumprimentos, dona Maria foi tomada por um pressentimento terrível: na pressa, havia esquecido o tacho de água quente no fogão a lenha. Peraltas, os meninos acabariam queimados.
Em desespero, correu de volta para a canoa. Quis a providência, no entanto, que no sentido oposto viesse o missionário, interessado em saber a causa da aflição.
Ao ouvir a resposta, o religioso aconselhou-a a assistir à missa conforme planejado, o Senhor, em sua infinita bondade, cuidaria da segurança dos garotos. Jesus não havia dito: “Vinde a mim as criancinhas”?
A mãe ficou tão calma que ao fim da missa encontrou tempo para tomar a sopa servida e ouvir as novidades das vizinhas.
Cruzou para a outra margem ao anoitecer. Mal aportou a canoa, escutou a algazarra alegre das crianças vinda da casa. Pelas frestas da madeira, bruxuleava a luz da lamparina. Ao abrir a porta, dona Maria das Dores se deparou com o milagre. Pelados dentro do tacho sobre o fogão, os meninos brincavam de jogar água fervente um no outro.