A malarioterapia, que inoculava uma versão “benigna” da malária, foi muito utilizada no tratamento da sífilis e rendeu um Nobel. Conheça essa história.
A malária transmitida pelo Plasmodium vivax não mata, mas faz você se sentir à beira da morte.
A sabedoria popular criou esse adágio para caracterizar os sintomas de febre alta, calafrios, cefaleia, dores musculares e anemia provocados pelos ataques da forma mais comum da enfermidade.
Plasmodium vivax é uma das cinco espécies de Plasmodium causadoras de malária em seres humanos. Durante muitos anos a malária por vivax foi considerada forma “benigna” da doença, em oposição à forma “maligna” associada ao Plasmodium falciparum.
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De fato, a malária por falciparum é mais grave, responsável por 650 mil óbitos anuais, número que corresponde a 90% das mortes pela doença no mundo todo – especialmente em crianças dos países da África situados abaixo do deserto do Saara.
Essa aparente benignidade do Plasmodium vivax permitiu que fosse usado como imunoterapia, a partir do final do século 19.
Nessa época, surgiram teorias de que episódios de febre alta poderiam melhorar quadros psiquiátricos. Um dos maiores defensores dessas ideias foi o psiquiatra austríaco Julius Wagner-Jauregg, que a partir dos anos 1880, tratou vários pacientes com toxinas causadoras de febre, como a tuberculina e a toxina da salmonela, com resultados desanimadores.
Até hoje não se conhece o mecanismo pelo qual a malária estava associada à melhora dos quadros neuropsiquiátricos da sífilis terciária. É possível que o estímulo imunológico provocado pelo Plasmodium fosse suficientemente intenso para disparar uma resposta do sistema imune contra o Treponema.
Em 1917, Wagner-Jauregg experimentou infectar portadores de sífilis terciária com o agente da malária.
Doença muito prevalente naqueles tempos sem antibióticos, a sífilis terciária se instala quando o Treponema pallidum ataca o sistema nervoso central, provocando distúrbios neurológicos e quadros psicóticos.
O médico austríaco colheu sangue de um soldado que havia contraído malária na guerra dos Balcãs, e inoculou-o em nove pacientes com neurossífilis. Seis deles apresentaram melhora.
Rapidamente, malarioterapia se tornou “state of the art” no tratamento da sífilis terciária, na Europa inteira e nos Estados Unidos.
No período que vai de 1917 à descoberta da penicilina nos anos 1940, dezenas de milhares de pacientes com sífilis terciária foram infectados com o parasita da malária.
Cada clínica especializada usava sua própria amostra de Plasmodium. Depois de uma série de mortes por falciparum, a maioria delas se concentrou em amostras de vivax.
Até hoje não se conhece o mecanismo pelo qual a malária estava associada à melhora dos quadros neuropsiquiátricos da sífilis terciária. É possível que o estímulo imunológico provocado pelo Plasmodium fosse suficientemente intenso para disparar uma resposta do sistema imune contra o Treponema.
O fato é que cerca da metade dos pacientes tratados melhorava o suficiente para retornar à vida cotidiana.
Pela descoberta, Wagner-Jauregg recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1927.
Por outro lado, o uso medicinal do parasita foi o responsável pela fama de doença benigna que a malária adquiriria nos anos seguintes, reputação sem o menor fundamento. Apesar dos efeitos positivos no tratamento da neurolues, cerca de 15% dos pacientes inoculados com o parasita morriam de malária.