Premonições | Artigo

O mesmo acontece com muitos médicos com quem compartilho as frustrações de antever as tragédias pessoais dos que fumam e bebem o tempo todo, dos que comem muito mais do que o necessário.

Antecipar acontecimentos trágicos é uma experiência angustiante. Sinto a frustração de ter premonições de tragédias pessoais dos que fumam e bebem o tempo todo e dos que comem em excesso. 

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Publicado em: 25 de abril de 2011

Revisado em: 22 de outubro de 2021

Antecipar acontecimentos trágicos é uma experiência angustiante. Sinto a frustração de ter premonições de tragédias pessoais dos que fumam e bebem o tempo todo e dos que comem em excesso. 

 

Prever acontecimentos trágicos é experiência angustiante. Quando era menino, li num gibi de terror a história de um homem que correu para baixo de uma árvore para se proteger da chuva no exato momento em que um raio a partiu ao meio. O impacto lançou seu corpo a metros de distância.

Horas mais tarde, recuperou a consciência e voltou trôpego para casa. Tomou um prato de sopa servido pela esposa, foi para a cama e dormiu. Acordou no meio de um pesadelo em que uma senhora de vestido preto era atropelada por um ônibus em alta velocidade. As imagens do sonho foram tão vivas que ele levou tempo para perceber que não se encontrava no local do acidente.

 

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Pela manhã, a caminho do escritório, de chapéu, o homem se deteve num cruzamento de pedestres ao ser tomado por uma tontura tão forte que o obrigou a se agarrar num poste. Sentiu as mãos trêmulas, o corpo gelado, a voz engasgada e a impressão de que algo terrível aconteceria naquele instante.

O mal-estar não atraiu a atenção dos transeuntes que aguardavam para atravessar, exceto a de uma senhora de olhar estranho que perguntou se ele precisava de ajuda. Era a mulher do pesadelo, em seguida atropelada por um ônibus desgovernado.

Dias mais tarde, sonhou com um trem que partiria de Londres às 8h daquela manhã, para se chocar com uma composição em sentido oposto. Acordou com o terrível choque metálico e os gritos dos sobreviventes entre as ferragens, olhou o relógio e correu para a estação.

Na administração, fez de tudo para convencer os funcionários a cancelar a viagem; insistiu tanto que acabou expulso do escritório. Aos berros, na plataforma, correu entre os passageiros implorando para que não embarcassem. Desvairado, segurava-os nas portas do trem e tentava arrancá-los das poltronas; no fim, agarrou-se ao maquinista na cabine de comando com tanta fúria que a polícia teve dificuldade para retirá-lo de lá. Nos quadrinhos da página seguinte, apareciam os trens destroçados e a manchete do jornal: “O maior desastre ferroviário da história da Inglaterra”.

Sua vida se tornou um inferno. Sonhava com operários que despencavam de andaimes, mineiros soterrados, colisões e desmoronamentos. Corria até o local das futuras tragédias na tentativa de impedi-las, mas era recebido como lunático; ninguém lhe dava ouvidos.

Não conseguia trabalhar, conviver com a família nem pensar em outra coisa que não fosse o acidente fatal prestes a ocorrer. Acabou ensandecido, preso, e enviado para um manicômio. Bem guardadas as devidas proporções, às vezes me lembro dessa história em quadrinhos lida na infância e me identifico com o personagem.

Nunca fui atingido por um raio nem sou capaz de prever colisões de automóvel, desastres aéreos ou o destino de balas perdidas; no entanto, às vezes, olho para uma pessoa aparentemente saudável, percebo que ela se encontra em rota de colisão com o sofrimento ou a morte e tenho ímpeto de agir como o inglês dos quadrinhos.

Examino uma mulher de 60 anos com os lábios roxos, pele com tonalidade vermelho-azulada nas maçãs do rosto e ao redor da região em que as sobrancelhas se encontram, e não consigo deixar de vê-la com o tubo de oxigênio, tossindo até perder o fôlego por causa do enfisema ou do câncer de pulmão provocado pelo cigarro.

Diante de um homem de 50 anos obeso, diabético, que não toma os medicamentos receitados nem faz os controles de rotina, como deixar de imaginá-lo cego ou com insuficiência renal numa sala de diálise? Sento ao lado do taxista fumante, sedentário, com excesso de gordura abdominal, que se confessa hipertenso e portador de colesterol elevado e, sem querer, constato que os fatores de risco estão reunidos de tal forma que só falta acontecer o ataque cardíaco ou o derrame cerebral.

Pensamentos mórbidos de quem enxerga o mundo ao redor pelo viés da profissão? Pode ser, mas como evitar? O mesmo acontece com muitos médicos com quem compartilho as frustrações de antever as tragédias pessoais dos que fumam e bebem o tempo todo, dos que comem muito mais do que o necessário, passam os dias sentados e acumulam gordura abdominal.

Ainda bem que somos racionais por formação. Se agíssemos da forma tresloucada do personagem inglês para tentar convencê-los a largar o cigarro, fazer exercícios, comer menos, beber com moderação e fazer exames preventivos com regularidade, provavelmente acabaríamos no hospício, como ele.

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