Foi bom te encontrar | Artigo

Um médico nunca consegue esquecer a profissão. Não importa onde esteja, sempre precisa dar consulta médica para estranhos. Leia no artigo do dr. Drauzio.

dois homens se encontram. Médicos fazem consulta médica em qualquer lugar

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Publicado em: 14 de maio de 2019

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Médicos nunca conseguem se desligar da profissão. Não importa onde estejam, sempre precisam dar consulta médica a estranhos.

 

Médicos dão consultas onde quer que estejam. Por causa da exposição na TV, meu caso é mais grave. Sou abordado na rua, na padaria, na fila do cinema, em elevadores lotados e banheiros de aeroportos.

Evito dar moleza em espaços públicos, porque haverá de aparecer alguém com dúvidas urgentes que exigirão respostas complexas: “Minha médica disse que preciso fazer reposição hormonal, o que você acha?”. “Estou tomando anabolizante na academia. Faz mal?” “Quem fuma maconha perde a memória?”. “Você é a favor da dieta vegana ou da paleolítica?”. “Já tentei de tudo. Como eu faço para parar de fumar?”.

 

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Pouco vou a festas, a probabilidade de conversar com alguém interessante é pequena, comparada à de escutar ladainhas de achaques crônicos, descrições de dores nos mais insignificantes detalhes, pedidos de opinião a respeito de doenças que desconheço e histórias mórbidas que ocorreram em familiares do interlocutor.

Muitos descrevem com riqueza de pormenores e visível prazer as agruras enfrentadas em hospitalizações — se forem internações em UTI, então! Outros se vangloriam de peripécias fisiológicas que os tornam únicos: “Meu médico disse que nunca viu responder a um antibiótico como eu”. “Eu não gripo”. “Não faço febre”. “Tenho alergia a tudo”. E, com o maior orgulho: “Eu cicatrizo que é uma maravilha”.

Na correria em que vivo, quando cruzo com alguém que mal conheço e ouço a frase: “Foi bom te encontrar”, preciso conter o ímpeto de perguntar: “Bom para quem?”. É certeza que virão pedidos de condutas médicas que não terei condições de dar, a partir dos dados imprecisos que serão fornecidos.

Antes de entrar num táxi, tomo a precaução de me preparar psicologicamente para fazer diagnósticos, receitar medicamentos, sugerir exames laboratoriais, escutar histórias de mortes e de sofrimentos de amigos e vizinhos.

Geralmente, começa assim: “O senhor não é aquele doutor da televisão?”. Quando respondo que sim, o motorista se esforça para acertar meu nome: Cláudio? Grauço? Braulio? Drazo? E por aí vai. Às vezes, a confusão chega mais longe. Entendo que por causa da calvície me confundam com o Marcos Caruso e com o saudoso Raul Cortez, mas achar que sou Pedro Bial ou o Caco Barcelos, proprietário de uma vasta cabeleira?

A segunda frase costuma ser de gratidão, não a mim, claro, mas à Providência. “Foi Deus quem fez o senhor entrar no meu táxi”.

Em seguida, vem uma enxurrada de questões: “Minha avó descobriu que está com câncer de intestino. Quanto tempo de vida?”. “O senhor tem um remédio bom para deixar um hipertenso com 12 por 8?” “Como faço para perder essa barriga?”. “Posso tomar Viagra e beber cerveja?

Meses atrás, um deles se queixou de uma lesão no pênis. A descrição foi de pouca valia: “É uma feridinha bolhosa que não é pequena nem grande, não dói nem coça, mas arde”. Perguntei se ardia muito. “Parece que caiu uma gota de pimenta malagueta”. Difícil imaginar a sensação para quem jamais derrubaria pimenta num lugar desses.

Fiquei em situação delicada. De um lado a vontade de ajudar o rapaz e a convicção de que, se visse a lesão, faria o diagnóstico; de outro, o inconveniente: ele precisaria parar o carro em plena rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, abrir a calça e expor o pênis, cena fatalmente mal interpretada pelos alunos do Mackenzie, àquela hora aglomerados nas imediações da faculdade. Uma reputação de 70 anos corria risco de cair por terra num piscar de olhos.

Pensei em sugerir que encontraríamos privacidade um pouco mais à frente, numa das ruas do Pacaembu, mas abandonei a ideia. Seria pior se alguém nos surpreendesse numa rua deserta. Como convencer o bisbilhoteiro de que se tratava de um exame médico?

Seja o que Deus quiser, pensei. Pedi que estacionasse logo no início da Avenida Higienópolis, apesar do vai e vem de transeuntes na calçada.

A lesão era formada por bolhas pequenas no prepúcio, a pele que recobre a glande: “Isso é herpes simples”. O diagnóstico não teve o dom de tranquilizá-lo, pelo contrário, despertou uma ponta de revolta:

— O senhor diz simples, porque não sabe como incomoda.

Expliquei que Herpes simplex era o nome do vírus que lhe fora transmitido por contato sexual, informação que o deixou ainda mais irritado:

— De quem eu peguei isso?

— Agora, você me fez uma pergunta difícil.

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