Duzentos anos de medicina – 1ª parte | Artigo

De sangrias a medicamentos. Em duzentos anos de medicina é possível analisar o incrível salto da ciência. Leia mais no artigo do dr. Drauzio.

crânio e vidros de remédios antigos sobre balcão, simbolizando duzentos anos de medicina

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Publicado em: 22 de outubro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

De sangrias a medicamentos. Em duzentos anos de medicina é possível analisar o incrível salto da ciência. 

 

“The New England Journal of Medicine”, a revista de maior circulação entre os médicos, completa 200 anos.

Publicado em 1802, o primeiro número trazia um artigo de John Warren, um dos fundadores da Harvard Medical School. Nele, o médico descrevia os sintomas e o tratamento de um religioso que se queixava de dores fortes no peito, aos menores esforços.

Veja também: Leia a primeira parte deste artigo: “Os últimos cem anos na medicina”

Do ponto de vista científico, a descrição dos sintomas de insuficiência coronariana é impecável, mas o tratamento realizado é de assustar. O paciente, um “clérigo pletórico”, foi tratado com estimulantes, sangria e aplicações locais de éter; em seguida, “recebeu novas sessões de sangria, ópio, laxativos poderosos e agentes cáusticos aplicados sobre a pele do esterno”.

Como os sintomas persistiram, Warren tentou uma resina de asafétida — planta caracterizada pelo odor pútrido — e aplicou nitrato de prata nos braços e nas coxas, com a intenção de abrir fissuras na pele para drenar os maus fluidos.

Embora sejam consideradas absurdas, é preciso entender que essas práticas pareciam sensatas numa época em que os médicos e a população acreditavam que os estados de saúde e doença dependiam do equilíbrio entre o fluxo dos quatro humores corpóreos: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela.

Para eles, um bom remédio deveria provocar sintomas suficientemente intensos para restaurar a harmonia entre os humores. Por exemplo, alguém convencido de que suas agruras resultavam do mau funcionamento dos intestinos, sentiria alívio ao receber vomitórios e laxantes. Eram os tempos da “medicina heroica”, segundo a qual quanto mais grave a enfermidade, mais agressivo o tratamento.

Em 1812, o “The New England” recomendava “sangria copiosa” nos casos de ferimento por arma de fogo, estratégia bizarra, mas que conseguia diminuir os sinais de inflamação e a temperatura corpórea, dando a impressão de que não ocorreriam complicações supurativas ou gangrena. O mesmo procedimento era indicado para abaixar a febre da malária.

A revolução da farmacoterapia ainda levaria pelo menos 30 anos para acontecer. Apenas na década de 1950, cerca de 4.500 drogas novas entraram no comércio, nos Estados Unidos.

Ainda na primeira metade do século 19, o francês Pierre Louis criou o “método numérico”, ao comparar dois grupos de pacientes com pneumonia tratados com ou sem sangria, sem encontrar diferença na evolução entre eles.

A partir daí, a filosofia de ceticismo que tomou conta da prática médica encontrou no americano Oliver Holmes sua maior expressão. Em 1860, ele afirmou: “Se toda a matéria médica, como hoje é empregada, fosse afogada no fundo do mar, seria muito melhor para a humanidade – e muito pior para os peixes”.

Essa postura niilista, no entanto, jamais se tornou popular, porque nenhum médico encontra permissão moral para cruzar os braços cruzados diante do sofrimento humano.

Em 1846, a revista publicou o artigo em que William Mortond escrevia a anestesia com éter. A descoberta, no entanto, demorou mais de cinquenta anos para revolucionar a prática cirúrgica, porque os cirurgiões precisavam decidir se a analgesia justificava os riscos de morte por septicemia. Apenas no início do século 20, surgiram as técnicas de assepsia e os rituais das equipes nas salas de operação, responsáveis pela redução das complicações infecciosas.

Em 1912, quando a revista completou cem anos, Paul Ehlich, em Berlim, sintetizou um composto dotado de ação contra a sífilis, o Salvarsan. Foi a primeira prova do conceito de que os medicamentos deveriam ser específicos para a doença e não para cada doente em particular.

A descoberta teve impacto limitado, porque a especificidade do Salvarsan era mais teórica do que empírica. Apesar de beneficiar alguns pacientes, a droga provocava efeitos colaterais intensos e não agia em todos os casos de sífilis.

O pioneirismo do Salvarsan também se manifestou ao expor pela primeira vez as limitações da abordagem reducionista em medicina: a sífilis não se restringia ao Treponema pallidum, envolvia comportamento sexual, aspectos morais e discriminação social. Destruir a bactéria era condição necessária, mas não suficiente para combater a epidemia.

A revolução da farmacoterapia ainda levaria pelo menos 30 anos para acontecer. Apenas na década de 1950, cerca de 4.500 drogas novas entraram no comércio, nos Estados Unidos.

O impacto dessas descobertas analisaremos numa próxima coluna.

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