Aziz Ab’Saber: De volta ao começo

O geógrafo Aziz Ab’Saber retorna à região de Itu e Salto onde, 60 anos atrás, iniciou o estudo que culminou na Teoria dos Redutos.

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Publicado em: 19 de março de 2012

Revisado em: 24 de março de 2021

O geógrafo Aziz Ab’Saber retorna à região de Itu e Salto onde, 60 anos atrás, iniciou o estudo que culminou na Teoria dos Redutos.

O geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-2012) retorna à região de Itu e Salto onde, 60 anos atrás, iniciou o estudo que culminou na Teoria dos Redutos, a que explica a ocorrência de tipos diferentes de solo, rochas e vegetação em uma mesma região como resultado das mudanças sofridas pelo clima da Terra no decorrer dos seus milhões de anos de evolução.

Sessenta anos, o tempo de uma vida. O intervalo entre o jovem estudante e o grande cientista, autor de uma das teorias mais importantes do seu ramo da ciência.

Estrada Salto-Jundiaí, o mesmo espaço. Alterado, é verdade, após todo esse tempo, mas ainda reconhecível aos olhos do professor e eterno estudante. Nessa área, Aziz Ab’Saber realizou suas primeiras excursões a campo como estudante do curso de Geografia da Universidade de São Paulo. Àquela época, bebia a sabedoria de um dos maiores intelectuais da Geografia a lecionar no Brasil, o geomorfologista francês Pierre Monbeig, membro do Departamento de Geografia da USP de1935 a1946. Esse professor o apresentou à leitura da paisagem com objetivo de desvendar seu processo de transformação naquilo que é hoje. Os climas, os tipos de solos e rochas, as condições para a fixação da vida, nada disso simplesmente sempre foi assim, da forma como o conhecemos hoje. Pela ação das forças da natureza ou do homem, o meio ambiente terrestre convive com as mudanças há, mais ou menos, 4,6 bilhões de anos.

 

A VIAGEM

 

“Desde os meus primeiros estudos de Geologia, sentia a necessidade de entender a evolução dos quadros paleogeográficos e paleoclimáticos. Como foram os climas do passado, as condições ecológicas do passado. Por exemplo, o continente africano já estave grudado ao que hoje é o Brasil. Esse supercontinente, como é chamado pelos geógrafos, era muito seco no interior. Eu sempre me interessei em saber que variações ocorreram em seu clima, quando a enorme massa de água representada pelo Oceano Atlântico ocupou o espaço entre os dois blocos “.

Durante o trajeto, o olhar aguçado de Aziz Ab’Saber anota tudo. “Toda essa região era tomada por pequenas propriedades, havia muitas parreiras, produzia-se muito vinho bom por aqui. Havia café, também, é claro. Note a quantidade de grandes galpões que existem hoje!” Neste trecho, nos últimos anos e muito aceleradamente, grandes companhias estabeleceram seus barracões, enormes galpões, muitos outros em fase de construção, aproveitando-se das facilidades conferidas pelo posicionamento estratégico da região em relação à cidade de São Paulo.

Nossa primeira parada é num ponto da estrada ainda não ocupado pelos barracões. Ab’Saber quer observar um pequeno trecho de cerrado uma faixa de, no máximo, um quilômetro de árvores de tamanho médio, galhos retorcidos e folhas ásperas. Apesar de ter constatado a predominância das caatingas no período de extrema secura enfrentado pela região 20 mil anos atrás, pequenos trechos receberam uma cobertura de arbustos. Seus descendentes podem ser vistos adentrando-se apenas cerca de dez  metros do canteiro da rodovia.

Os remanescentes de cactus estão algumas dezenas de quilômetros adiante, entre Salto e Jundiaí. Há certo desapontamento nos comentários, quando o professor nota que os sítios de cactus e grandes rochas, os matacões, assim como os pequenos trechos de cerrado, vão sendo gradativamente destruídos pela ocupação humana da região. Grandes indústrias e, também, condomínios, pois “é cada vez maior o número de paulistanos que se mudam para as maiores e mais próximas cidades do interior”, completa.

A necessidade de preservar é iminente. Os antigos sítios estão, hoje, cercados pela região periférica das cidades médias daquela região. São vistos como terrenos baldios, alvos de todo tipo de depredação. “Eu não consigo que se faça o tombamento dessa área. As pessoas vêm visitar para retirar cactus e colocá-los em seus jardins. Até a prefeitura já retirou cactus para colocar em pequenos jardins próximos à estação ferroviária. O brasileiro não tem muita estratégia para defender um reduto importante, que representa um documento do passado ecológico”. Ab’Saber reforça a necessidade de atuação dos intelectuais para defesa a fim de evitar descalabros como esse. “Eu chamo a atenção das pessoas sobre isso, mas eles me acham muito briguento”.

 

TEORIA DOS REDUTOS

 

A área compreendida entre as cidades de Salto e Jundiaí foi seu campo inicial de estudos  para a compreensão dos fatores climáticos do passado. Relembrando as viagens como estudante, Ab’Saber falou da curiosidade de seus mestres em estudar certas linhas de pedras localizadas no meio de barrancos e encostas de morros ou a cerca de um metro abaixo da superfície. Certa vez, ouviu de outro geógrafo francês, Jean Tricart, algo que o impulsionou rumo à descoberta que o tornaria célebre.

“O professor Tricart olhava as linhas de pedra dizia: “Nesse tempo, era um chão pedregoso. No passado, aqui houve um clima mais seco, com uma flora que poderia ser de caatingas ou cerrados”. Mais tarde, Ab’Saber viria a comprovar a predominância das caatingas naquela região do estado entre 23 mil e 13 mil anos atrás. “Eu comecei a olhar as linhas de pedra pelo Brasil inteiro. Da Roraima até fora do Brasil, no Uruguai. Fiz um mapa baseado nas áreas de maior intensidade de aparecimento dessas linhas. Eu sabia da importância das stone-lines para a ciência em geral e, por muito tempo, esse termo varou pela ciência afora sem explicação. Foi, então, que se descobriu no Brasil que aquilo representava um chão pedregoso e, portanto, um clima diferente daquele que, hoje, existe na região”.

Estava iniciado o caminho que o levou à Teoria dos Redutos, uma referência importantíssima para inúmeras áreas da ciência. Durante o período geológico do quaternário antigo, ou seja, há 500 mil anos, o nível do mar começou a descer até cem metros abaixo do seu nível atual e a corrente fria subiu, dominando as áreas de clima tropical. Com a redução da tropicalidade, reduziram-se as florestas. Os espaços deixados por elas foram ocupados por caatingas típicas de climas secos. Os cactus que encontramos hoje, nos subúrbios de cidades como Salto, Itu e Jundiaí, são descendentes das sementes daqueles que dominaram a região cerca de 20 mil anos antes do presente.

Seguindo a mesma linha de pensamento, Ab’Saber definiu que, iniciada a retropicalização do planeta, as temperaturas voltaram a elevar-se, derretendo geleiras e fazendo o nível do mar retornar ao seu nível anterior. A umidade voltou e as áreas de florestas, que haviam se reduzido muito, puderam expandir-se ocupando as áreas que hoje conhecemos. “Em alguns pontos, como na Floresta Amazônica, várias florestas diferentes emendaram-se umas às outras nesse momento em que a umidade retornou”.

Ab’Saber sobe em barrancos, adentra pelo canteiro da estrada, entrevista moradores que nem sequer imaginam estar vivendo ao lado de um sítio importantíssimo para os cientistas brasileiros. Sua fascinante disposição pelo conhecimento ilumina a todos. O reencontro com a região em que fez sua primeira viagem física e intelectual rumo ao cientista que seria mais tarde não é idealizado. Alguns sítios estão destruídos, outros completamente abandonados. Mesmo assim, é enriquecedor poder acompanhar o olhar do homem de 77 anos, que dali partiu para estudar seu país inteiro, rever os velhos cactus e as formações rochosas, como se reencontrasse um velho amigo.

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