Aumento na circulação de armas: uma questão de saúde pública | Coluna

Entidades de saúde publicam estudos mostrando associação entre aumento na circulação de armas de fogo e taxas de acidentes, suicídios e homicídios. Entenda.

Cartaz colado em um muro, com desenho indicando que armas não são permitidas.

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Publicado em: 6 de fevereiro de 2019

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Entidades e profissionais de saúde do mundo todo publicam estudos mostrando associação entre aumento na circulação de armas de fogo e maiores taxas de acidentes com armas, suicídios e homicídios.

 

Em 15 de janeiro de 2019, o presidente da República Jair Bolsonaro assinou o decreto Nº 9.685, que flexibiliza o registro, a posse e comercialização de armas de fogo e munição, permitindo que cidadãos sem ficha criminal tenham até quatro armas em casa. O ato dividiu a opinião pública. Entidades ligadas à indústria de armas, como a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam), e às Forças Armadas elogiaram a decisão. Já organizações que estudam e trabalham com temas relacionados à segurança pública, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública de São Paulo e o Instituto Igarapé, do Rio de Janeiro, alertaram para o risco de aumento da taxa de homicídios que mais armas em circulação pode trazer.

Embora a discussão sobre as consequências da difusão de armas de fogo esteja muitas vezes restrita aos setores de segurança pública, o tema também diz respeito à área da saúde. Há um consenso na literatura médica internacional indicando que a facilitação ao acesso a armas de fogo está relacionada ao aumento de acidentes (fatais e não fatais), suicídios e homicídios, o que causa impacto direto na área da saúde de países cujas leis de flexibilização da posse são menos restritas.

 

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A relação entre aumento de armas e homicídio já foi confirmada por vários estudos nacionais e internacionais. No Brasil, um dos mais importantes foi publicado em 2013 e coordenado pelos pesquisadores Daniel de Castro Cerqueira e Danilo Santacruz Coelho, ambos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e relata que nas últimas três décadas anteriores ao estudo houve 1,1 milhão de assassinatos no Brasil. Para os autores, o aumento da proliferação de armas não diminui o número de crimes contra o patrimônio; por outro lado, a pesquisa demonstrou que para cada 1% a mais de armas de fogo nas cidades, a taxa de homicídios aumenta de 1% a 2%.

“A noção de que a presença de mais armas fará a nossa sociedade mais segura é uma falácia que não se sustenta quando olhamos os dados. Do ponto de vista da saúde, por onde se examine, o consenso da literatura indica que mais armas estão mais associadas a mais mortes”, afirma o psiquiatra Luis Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Uma metanálise (técnica que integra os resultados de dois ou mais estudos independentes sobre o mesmo tema) publicada em 2014 no “Annals of Internal Medicine” revelou que 51,8% dos suicídios ocorridos em 2009 nos Estados Unidos foram causados por armas de fogo. A revisão também mostrou que em casas em que há armas, o risco de uma morador morrer por suicídio aumenta três vezes e, por homicídio, duas vezes. Entre as mulheres, o risco é maior. Em 2009, 74% das mulheres assassinadas no país morreram em casa.

No Brasil, o serviço Ligue 180 registrou mais de 80 mil casos de violência de gênero, 78 feminicídios e 665 tentativas de homicídio contra mulheres apenas nos sete primeiros meses de 2018. Considerando a subnotificação desse tipo de violência e que a maioria dos crimes ocorre dentro das residências da vítima, não é difícil imaginar que crimes contra a mulher tendem a aumentar com a maior difusão de armas de fogo. Foi o que revelou um estudo americano publicado em 2002 no “Journal of Urban Health”: A taxa de feminicídio foi mais prevalente nos estados americanos em que o acesso a armas de fogo é facilitado.

Onde há uma arma de fogo em casa aumenta o risco de morte acidental de adultos e, principalmente, de crianças. Há evidência que demonstra que um número considerável de pais que achavam que seus filhos não sabiam onde eram guardadas as armas foram surpreendidos pelo fato de que essas crianças declararam que sabiam onde elas estavam.

A RAND Corporation, entidade americana sem fins lucrativos que desenvolve pesquisas e análises para entidades e órgãos do mundo todo, entre eles o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, publicou uma compilação de estudos cuja conclusão afirma: “Estados, regiões e países cujas residências possuem armas domésticas têm taxas mais elevadas de suicídio por armas de fogo.” A entidade também aponta uma associação entre posse de armas e risco de suicídio. Um estudo austríaco publicado no “British Journal of Psychiatry” também revela a mesma associação entre taxas mais altas de suicídio e homicídio e mais armas guardadas em casa. “Existe uma clara correlação entre mais suicídios e posse de arma de fogo na casa. Há muito tempo se sabe que o acesso a uma arma é fator de risco para suicídio consumado”, salienta Tófoli.

Crianças e adolescentes também estão vulneráveis a mortes por arma em casas e comunidades em que há circulação menos restrita desse tipo de armamento. A Associação Americana de Pediatria já publicou uma série de estudos sobre o tema, e recomenda como política da entidade: “A ausência de armas de lares e comunidades em que vivem crianças é a medida mais confiável e eficaz para evitar lesões relacionadas a armas de fogo em crianças e adolescentes”. A associação ressalta que, em 2009, uma entre quatro mortes, incluindo homicídio, suicídio e acidentes, de jovens entre 15 e 19 anos foi causada por arma de fogo. A Associação Canadense de Pediatria segue a mesma diretriz.

A Associação Americana de Saúde Pública ressalta que a violência causada por armas de fogo é prevenível e exige o envolvimento de toda a comunidade. “Onde há uma arma de fogo em casa aumenta o risco de morte acidental de adultos e, principalmente, de crianças. Há evidência que demonstra que um número considerável de pais que achavam que seus filhos não sabiam onde eram guardadas as armas foram surpreendidos pelo fato de que essas crianças declararam que sabiam onde elas estavam”, conclui Tófoli.

Uma revisão publicada em 2017 em um dos mais importantes períodicos médicos do mundo, o JAMA, revelou que leis de controle de armas mais rígidas estão associadas à redução na taxa de homicídios. Esses dados corroboram os dados da pesquisa brasileira conduzida por Cerqueira e Coelho (Ipea).

Segundo o Atlas da Violência 2018, com base em dados do Ministério da Saúde, em 2016 houve 62.517 homicídios no Brasil, 30 vezes a taxa da Europa. Desses, 71,7% foram praticados com arma de fogo. Os dados desse estudo revelam, ainda, a desigualdade social brasileira: a taxa de homicídios de negros equivale a 2,5 vezes a de não negros. Ou seja, mais de 70% das pessoas assassinadas no País são pretas ou pardas. Não é difícil pressupor que essa população será afetada pelo aumento da difusão de armas de fogo.

Os gastos do Estado com o tratamento de feridos é outro problema que afeta diretamente a área da saúde. Um levantamento feito pela Agência Brasil com base em dados do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2009 revelou que ferimentos por arma de fogo custaram 93 milhões de reais aos cofres públicos nos cinco anos anteriores ao levantamento. É um dinheiro que deixa de ir para o tratamento dos milhões de doentes que utilizam o SUS.

Assim sendo, é de se estranhar o silêncio das entidades e organizações de saúde brasileiras acerca do decreto assinado pelo presidente. Com exceção da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que publicou nota em que ressalta que o decreto é um retrocesso e pode colaborar para piorar nossos índices de violência, não encontramos nenhum pronunciamento oficial de associações e órgãos de saúde a respeito.

É extremamente importante que entidades e profissionais de saúde entendam que os acidentes e mortes, intencionais ou não, causados por armas de fogo, pelo gasto humano e financeiro que representam ao setor, são, sim, um problema de saúde pública.

 

*Agradecimento: Dr. Luis Fernando Tófoli

 

CVV – Centro de Valorização da Vida

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