Assassinos em massa são doentes? | Coluna

Mão com luva sobre uma faixa amarela típica de isolamento de cenas de crime.

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Publicado em: 16 de março de 2019

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Fenômenos complexos como assassinatos em massa são multicausais e não podem ser compreendidos por meio de explicações simplistas e reducionistas.

 

A história é sempre a mesma: diante de assassinatos em massa, surgem pessoas apressadas em tentar compreender os motivos que levam a crimes como esses. As especulações sobre as motivações dos dois jovens que em 13/03/2019 entraram atirando na Escola Estadual Raul Brasil, no município de Suzano, em São Paulo, e mataram oito pessoas antes de cometerem suicídio, não tardaram a aparecer na mídia e nas redes sociais.

É natural que busquemos respostas para fatos assim. Assassinatos em massa, em que as vítimas muitas vezes sequer têm relações próximas com os assassinos, chocam tanto pela crueldade quanto pela falta de motivação aparente. Entender por que ocorrem talvez nos aponte um caminho mais racional para lidar com uma violência tão sem sentido.

No entanto, massacres desse tipo são fenômenos complexos, que envolvem fatores biológicos, psicológicos e sociais. Não há, portanto, explicações simplistas e reducionistas — como apontar videogames ou bullying como culpados, por exemplo — que deem conta de esclarecê-los.

 

Veja também: Suicídio: é possível preveni-lo?

 

O jornalista americano Dave Cullen, considerado uma dos maiores referências sobre o massacre de Columbine, ocorrido em 1999 nos Estados Unidos com características bastante semelhantes ao assassinato em massa da cidade paulista, disse, em entrevista ao jornal “Folha de São Paulo” de 15/03/2019, não ver ligação entre o crime e o uso de videogames violentos, apontado como um dos fatores que teriam influenciado os dois assassinos. Para Cullen, milhões de crianças jogam videogame todos os dias e não se tornam pessoas violentas.

O psiquiatra Luis Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda: “É difícil medir esse tipo de efeito em adolescentes, mas jovens que estejam psicologicamente bem provavelmente não se tornam violentos por meio de videogames ou de filmes violentos”. É que o revela, também, um estudo da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que mostrou não haver associação entre videogames violentos e comportamento agressivo em adolescentes.

“Não faltam aspectos que podem estar relacionados a esses eventos, como a ocorrência em escolas e agremiações de jovens, a existência de bullying, questões étnico-religiosas etc. Mas essas características são evidentemente muito vastas e concomitantes, de forma que se torna improvável localizar causas claras e comuns a esses fatos”, explica o pós-doutor pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) André Zanetic.

“É preciso, também, tomar cuidado com diagnósticos psiquiátricos precipitados. Os psiquiatras precisam de várias consultas e dados do paciente para realizar um diagnóstico, não dá para fazer um laudo psiquiátrico só com informações obtidas no calor dos acontecimentos e por fontes secundárias”, diz Tófoli.

Se não é possível fazer diagnóstico apenas com base em informações colhidas na imprensa, também é verdade que, embora não haja um padrão claro sobre o perfil dos assassinos, há algumas características comuns aos perpetradores de assassinatos em massa que podem ser destacadas com o intuito de buscarmos prevenir novos ataques.

Um estudo feito pelo FBI, a agência de inteligência dos Estados Unidos, analisou os 63 atentados cometidos no país entre os anos de 2000 e 2013 e concluiu que 94% dos assassinos  eram homens, 63% brancos e 25%  haviam sido diagnosticados com algum transtorno mental, sendo apenas três com transtorno psicótico. “Essa taxa é muito semelhante à da população geral, portanto não podemos dizer simplesmente que todas as pessoas que cometem assassinatos em massa são psicopatas ou psicóticos”, afirma Tófoli. “A mesma coisa pode ser dita sobre dependência de álcool e outras drogas.”

Assim, embora esses assassinos sejam pessoas vulneráveis psicologicamente, é bem pouco provável que todos tenham transtornos psiquiátricos. Nesse caso, os fatores sociais que podem estar envolvidos em massacres precisam ser abordados e estudados com rigor, o que não é algo simples de se fazer do ponto de vista metodológico.

Outro estudo também do FBI analisou 50 assassinatos em massa e crimes com atiradores entre 2016 e 2017 e revelou que todos os atiradores eram homens. Há fatores ligados à construção social da masculinidade, como exaltação da violência como modo de resolver conflitos, que podem estar relacionados a esses ataques e precisam ser discutidos. Não à toa, é comum o apreço desses jovens por armas e personagens violentos. “Essas pessoas em geral não têm comportamento violento, mas têm fascínio pela violência”, explica o psiquiatra.

Também chama a atenção o fato de que a maioria dos assassinatos em massa cometidos nos EUA foi perpetrada por brancos, o que torna ainda mais necessária a discussão sobre raça e gênero na análise desses crimes.

Os discursos de extrema-direita que estimulam a violência e se voltam contra determinados grupos sociais como mulheres e negros parecem encontrar eco em jovens com problemas de socialização e mais vulneráveis do ponto de vista psicológico. A organização de mídia americana Nation Institute compilou os dados de atos terroristas ocorridos entre 2008 e 2016 e concluiu que simpatizantes de extrema-direita cometerem quase o dobro de ataques em solo americano do que extremistas islâmicos.

De toda forma, não é possível estabelecer uma relação causal entre determinado aspecto social e assassinatos em massa, apenas traçar características mais comuns entre os criminosos para, então, tentar atuar na prevenção.

 

Acesso facilitado a armas

 

“O único fator evidente por trás desses massacres, desde Columbine até o mais recente ocorrido na Nova Zelândia em 14/03/2019, é a presença massiva de armas de fogo. Ainda que em Suzano tenha havido a presença ‘performática’ de armas como machados e bestas, foram as armas de fogo o elemento letal principal. Se não conhecemos os diversos aspectos que estão por trás desses fenômenos, sabemos exatamente qual o principal instrumento que os tornam possíveis. O descontrole do acesso às armas de fogo só fará ocorrências como essas crescerem mundo afora”, finaliza Zanetic. Tófoli concorda. “A literatura médica mostra que quanto mais armas, mais mortes. Isso já está mais do que documentado e estudado.”

Criar medidas como aumentar policiamento e estratégias de segurança como instalar detector de metal nas portas de entrada e saída podem ter efeito moderado, visto que a maioria dos atentados é planejada durante bastante tempo, e os atiradores buscam burlar a segurança dos locais.

Também é preciso cuidado com o chamado “efeito contágio”. Pesquisadores da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, mostraram que há em assassinatos em massa um efeito semelhante ao que acontece em suicídios: é comum ocorrerem crimes do mesmo tipo nos dias seguintes a esses eventos.

O mecanismo pelo qual algumas pessoas são suscetíveis a informações sobre esses acontecimentos não está claro, segundo os autores do estudo, mas sabe-se que divulgar informações sobre os assassinos, publicar material produzido por eles, como fotos e manifestos, e fornecer detalhes sobre os crimes servem como fatores motivacionais para eventos semelhantes.

A melhor forma de prevenir assassinatos em massa, além do controle de armas, é, segundo Tófoli, aproximar-se dos jovens e observá-los. “Pais e responsáveis pelas crianças e adolescentes, incluindo a escola, devem buscar identificar comportamentos de risco. Pessoas com dificuldade de relacionamento, muito introspectivas e pouco integradas ao tecido social devem receber um cuidado e atenção especiais, também voltados para evitar a geração de estigma”, salienta.

É importante, também, lidar com os conflitos e problemas de relacionamento que surgem em ambientes sociais como a escola. Buscar a solução de conflitos por meio de conversas e atividades pode tornar o ambiente mais favorável ao diálogo e menos propício ao apelo à violência.

 

*Com colaboração de Luis Fernando Tófoli

** Agradecimentos: André Zanetic e Mariana Bastos

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