Câncer: é correto culpar o próprio paciente pelo diagnóstico?

Há muitos fatores por trás da doença; e o comportamental é um deles, mas não somente o único.

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Publicado em: 24 de junho de 2022

Revisado em: 28 de junho de 2022

Há muitos fatores por trás da doença. O estilo de vida pode ser um deles, mas não é o único. Culpabilizar o paciente oncológico não ajuda  no enfrentamento da doença.

 

É muito comum e esperado sentir raiva, medo e tristeza diante de um diagnóstico de câncer, seja ele qual for, já que esta ainda é uma doença cercada de estigmas. O impacto desse diagnóstico não é sentido apenas pelo paciente. Familiares e amigos próximos também podem se abalar e buscar “razões” que justifiquem o surgimento do câncer.

 A culpa é um sentimento que acompanha o paciente durante todo o tratamento, principalmente quando o indivíduo é diagnosticado com um câncer de pulmão, de bexiga, cabeça e pescoço ou pâncreas, tumores que têm forte relação com alguns hábitos de vida. Então é muito comum que o próprio paciente pense, ou que alguém próximo diga: “devia ter parado de fumar”, “ter bebido menos”, “comido mais alimentos orgânicos”, “acordado às cinco da manhã para correr”,  entre tantos outros puxões de orelha. 

Entretanto, a psico-oncologista do A.C.Camargo Cancer Center, Christina Haas Tarabay, já adianta que culpar o paciente, ou simplesmente sugerir que o estilo de vida da pessoa é o grande responsável pela doença (mesmo que possa de fato ter contribuído), não ajuda em absolutamente nada. 

“O paciente sabe disso tudo. Ele próprio já está se culpando e tendo que enfrentar um monte de emoções. Por isso que é importante esse papel da psicologia, para que ele possa externalizar essas questões, compreender de onde vem o comportamento de fumar ou beber, por exemplo, e tentar mudar o estilo de vida daqui pra frente, porque é isso que importa. O que ele vai fazer daqui pra frente”, sintetiza. 

 

Ninguém “faz um câncer”

O câncer intriga, até hoje, uma boa parte dos médicos e especialistas. Drauzio Varella, médico oncologista há mais de 50 anos, costuma dizer que o câncer faz parte do processo natural da vida, já que todos nós temos oncogenes. Se houver mutações genéticas, e uma delas “desligar” a capacidade natural do organismo de matar as células “danificadas”, o risco de câncer aumenta exponencialmente. 

É claro que o comportamento pode ser um fator que contribui para o aparecimento de um câncer, mas ele não é o único. Vale lembrar que a hereditariedade, genética e ambiente também são importantes. Num artigo do jornal “Folha de S. Paulo”, Drauzio escreveu o seguinte: 

”Cansei de ver mulheres com câncer de mama, mortificadas por acreditar que o nódulo maligno surgiu por lidarem mal com os problemas emocionais. E ouvir familiares recriminarem a falta de coragem para reagir, em casos de pacientes enfraquecidos a ponto de não parar em pé”. 

Nesses casos, a psicóloga reforça que a repetição contínua desses fatos comportamentais pode, inclusive, desestimular o paciente a aderir ao tratamento. 

“O tratamento do câncer é difícil e o paciente precisa de recursos de enfrentamento psíquico para lidar com tudo que está acontecendo. Família, amigos, espiritualidade, isso ajuda a dissolver a culpa”, explica Christina. 

Veja também: Leucemia mieloide aguda: por que o cuidador é tão importante?

 

Culpa reversa 

Christina conta também que é muito comum atender pacientes que dizem que fizeram tudo certinho, mantiveram uma vida equilibrada, como preconizam os especialistas em saúde, mas ainda assim tiveram um câncer. Como resultado desse acontecimento totalmente fora de controle, vêm a raiva e a culpa.  

“O paciente sempre vai buscar o porquê do câncer. Faz parte do processo analítico dele, mas não é isso que importa. Tentamos ajudá-lo a desfazer essas ligações, por meio da fala, aliviando as emoções”, conclui. 

 

Enfrentando um câncer

Nos últimos dias, comecei a ler o livro de memórias ”Undying” (ainda sem tradução no Brasil) da poeta estadunidense Anne Boyer, que enfrentou um câncer de mama triplo negativo, considerado um dos mais graves. A obra teve enorme repercussão e ganhou, inclusive, um prêmio Pulitzer em 2020. 

Contrariando as estatísticas, ela conseguiu se livrar da doença, depois de um tratamento quimioterápico e cirúrgico, que, segundo ela, a deixou com sequelas físicas, cognitivas e emocionais, porém viva. 

Para ela, o diagnóstico em si não foi o evento mais traumatizante, mas sim, as consequências, como os efeitos colaterais físicos e psicológicos da quimioterapia, e o elevado custo para se ter acesso a esses tratamentos nos EUA, o que acaba adoecendo ainda mais o paciente com câncer, além da tentativa frustrante de tentar conciliar vida pessoal e doméstica, com o curso do tratamento em si. 

Em uma de suas muitas reflexões acerca do tratamento, ela coloca: “Como você recupera o que foi tirado, o corpo inteiro, o eu saudável, sem cortes? A resposta é que você não pode”. 

Boyer fala ainda sobre a importância de falar sobre a dor e a culpa, pois segundo a autora, se não compartilharmos a dor, corremos o risco de sermos destruídos por ela, além de acreditarmos erroneamente que estamos sós.

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