A transmissão do HIV da mãe para o filho é um dos aspectos mais trágicos da aids. Quando surgiram os primeiros casos, a infecção se disseminava entre homens que faziam sexo com outros homens. Em seguida vieram os usuários de drogas injetáveis, as mulheres e os pacientes com hemofilia. Assim a doença espalhou-se pelo mundo.
Bebês nascidos de mães infectadas tinham risco de adquirir o vírus ainda na vida intrauterina, no momento do parto e durante a amamentação, sem que pudéssemos protegê-los. Os índices de transmissão chegavam a 40% ou mais, conforme o estudo.
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Então, em 1985, uma droga dos anos 1960 que falhara nos testes para tratamento do câncer demonstrou atividade contra o HIV em tubos de ensaio. No ano seguinte, começaram os testes em seres humanos.
No início dos anos 1990, foi lançado o estudo ACTG 076, em que mulheres grávidas infectadas foram divididas num grupo controle (placebo) e no grupo tratado com AZT.
Os resultados foram publicados na revista médica de maior circulação no mundo: “The New England Journal of Medicine”. Enquanto 25% dos bebês nascidos das mães que não receberam tratamento antiviral se tornaram HIV-positivos, apenas 8% dos filhos de mães tratadas com AZT foram infectados.
Foi a primeira demonstração de que seria possível impedir a transmissão materno-fetal do HIV. Com o desenvolvimento das drogas altamente eficazes contra o vírus, ganhou corpo a ideia de reduzir a zero a transmissão materno-fetal.
Em 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) implantou a “Getting Zero Strategy”, segundo a qual a transmissão materno-fetal deveria acabar no mundo até o ano de 2015.
Apesar da redução do número de casos, a partir de 2015 a queda estagnou. No ano de 2023, estavam infectadas 120 mil crianças com menos de 14 anos.
As principais razões para o fracasso foram: mulheres que conviviam com o HIV sem saber; as que estavam na fase aguda da infecção quando engravidaram; as que foram tratadas com esquemas ineficazes; e as que não aderiram ao tratamento, por indisciplina ou dificuldades materiais.
Dugdale Caitlin e colaboradores acabam de publicar na revista “The Lancet” uma metanálise que reuniu 80 mil pares de mãe e filho, originários de 44 países, com o objetivo de avaliar a influência da carga viral na transmissão, bem como o papel da cesariana e do parto normal no risco.
Resumidamente, os autores chegaram às seguintes conclusões:
1. Quando a carga viral da mãe tratada era menor do que 50 cópias/mL, o risco de infectar o filho foi muito baixo, de 0,2%.
2. Nas mães tratadas, mas com cargas virais entre 50 e 100 cópias/mL, o risco subiu para 1,3%.
3. Naquelas com cargas virais acima de 1.000 cópias/mL o risco atingiu 5,1%.
4. Mães que não receberam tratamento antiviral e mantinham cargas virais acima de 1.000 cópias/mL transmitiram o HIV para 12,7% dos filhos. Esse número caiu para 5,0% nas que apresentaram cargas virais da mesma ordem, mas estavam em tratamento antiviral.
5. Num subgrupo de 4.675 mulheres infectadas que iniciaram os antivirais antes da concepção e apresentavam cargas virais ao redor da data do parto abaixo de 50 cópias/mL o risco de transmissão foi zero.
Em relação à influência do tipo de parto na transmissão, constatou-se que, independentemente do tipo de parto, o risco de mães com cargas virais abaixo de 50 cópias/mL transmitirem é de 0,1% por mês, número que sobe para 0,5% ao mês naquelas com mais de 50 cópias/mL.
O estudo não avaliou o papel do aleitamento. A OMS, no entanto, recomenda que o leite materno seja substituído por fórmulas nos países em que as mulheres tenham condições financeiras para comprá-las. Em caso contrário, é possível seguir com a amamentação associada com a terapêutica antiviral combinada com a administração do antiviral nevirapina para o bebê.
Esse estudo demonstra que a pretensão de zerar a transmissão materno-fetal não é um sonho, mas uma possibilidade real. Temos os conhecimentos necessários: quanto mais cedo as grávidas com o teste positivo forem identificadas e iniciarem o tratamento, melhor (o ideal é fazê-lo antes da concepção).
As dificuldades, entretanto, são múltiplas. Testar, testar, testar, oferecer os antivirais sem custo – como ocorre no Brasil –, realidade inalcançável em muitas regiões do mundo, acompanhamento pré-natal, assistência ao parto, à mãe e ao filho depois dele.