Como funciona a memória | Entrevista

Por que algumas memórias ficam gravadas com nitidez, mesmo quando são fatos sem importância, enquanto compromissos são esquecidos? Leia a entrevista.

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Publicado em: 25 de março de 2011

Revisado em: 11 de agosto de 2020

A memória depende de processos realmente complicados e estoca vivências de maneira definitiva. Em síntese, memorizar significa formar conexões em determinadas áreas cerebrais. Veja a entrevista. 

 

Drauzio – Conseguimos lembrar o que aprendemos aos dois anos de idade, mas muitas vezes nos esquecemos do que almoçamos no dia anterior. Como funciona a memória?

Daniele Riva – A memória depende de processos realmente complicados e estoca vivências de maneira definitiva. Em síntese, memorizar significa formar conexões em determinadas áreas cerebrais.

Possuímos um sistema bem identificado que transforma o que passa pelo nosso nível de consciência em informações definitivas. Isso vale também para as atividades. Quando aprendo a tocar piano ou a jogar tênis, estou recorrendo basicamente aos mesmos mecanismos neurobiológicos que utilizo quando me lembro de algo.

 

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Drauzio – São várias as áreas cerebrais envolvidas no funcionamento da memória…

Daniele Riva – Inúmeras áreas cerebrais estão envolvidas. Entretanto, quando o sistema responsável pela memorização está comprometido, a pessoa não fixa novas informações. Em outras palavras, ela tem acesso a tudo que aprendeu antes de ficar doente, mas não fixa o que aprendeu depois. O médico entra no quarto, se apresenta, examina o paciente e sai. Quando volta dez minutos mais tarde com o resultado dos exames, não é mais reconhecido.

Esse tipo de patologia pode reduzir-se ao comprometimento da memória de fixação; ás vezes, é mais grave.

 

Drauzio – Não reconhece o médico que ali esteve dez minutos antes, mas é capaz de reconhecer um vizinho que não vê há 20 anos.

Daniele Riva – Reconhecerá, pois a informação antiga está estocada de forma sólida e definitiva.

 

Drauzio – Na clínica, são frequentes as queixas de falta de memória. O que mais temem as pessoas, quando se dão conta que andam meio esquecidas?

Daniele Riva — Todos os dias, atendo pessoas biologicamente normais com medo de que seus lapsos de memória sejam sintomas de Alzheimer ou de outra doença demencial.

Gostaria de deixar claro que a imensa maioria não é portadora de patologia nenhuma. Na realidade, o comprometimento não é da memória, mas da concentração. Suas mentes estão tão atormentadas por uma infinidade de eventos, compromissos e problemas semirresolvidos, que não conseguem prestar atenção naquilo que estão fazendo, sempre antenadas nas tarefas que estão por vir.

Já falamos das condições ambientais para as quais o nosso cérebro foi selecionado e aperfeiçoado. Imagine como vivia o caçador-coletor em ambientes relativamente restritos. Não havia motivo para grandes preocupações. O lazer abundava e o número de pessoas a que estava exposto era pequeno, não ultrapassava 20, 30, no máximo 40.

Hoje, entramos em contato com o dobro todo dia. Como, provavelmente, nosso sistema de armazenamento de informações usuais referentes à face não foi selecionado evolutivamente para suportar tal volume de contatos, há uma sobrecarga do sistema, que não é infinitamente plástico. É pré-programado e tem limitações, limitações operacionais mesmo.

 

Drauzio – Talvez seja uma questão de aprendizado para lidar com essa nova situação…

Daniele Riva – De aprendizado e de otimização dos recursos intelectuais. No mundo moderno, somos atormentados por tantas trivialidades, que sobra pouco espaço mental para elaborar aquilo que realmente importa.

 

Drauzio – Quando se compara o número de informações que esses antepassados tinham de guardar na memória com o de hoje, a diferença é gritante. Se o processo continuar nesse ritmo, provavelmente, as gerações futuras terão memórias bem mais prodigiosas do que as nossas, porque a seleção estará trabalhando nesse sentido?

Daniele Riva – É extremamente arriscado prever em que direção vamos caminhar. Vivemos num meio tão impregnado pela cultura, que fica difícil falar em seleção natural. Na minha opinião, qualquer tipo de seleção que possa ocorrer daqui para frente, será intracultural.

 

Drauzio – A gente sabe de onde veio, mas para onde vamos, as possibilidades são ilimitadas…

Daniele Riva – Ilimitadas.

 

Drauzio – Todo mundo tem preocupação com a memória. Especialmente, as pessoas mais velhas vivem atrás de um remédio que possa avivar ou preservar-lhes a memória. Esse remédio existe?

Daniele Riva – Não existe nenhum remédio eficaz para a memória.

 

Drauzio – Por que alguns fatos (não me refiro a acontecimentos marcantes como a perda de um ente querido, mas a fatos absolutamente rotineiros) são lembrados com detalhes? Sem que nada de especial tenha acontecido, a pessoa lembra com nitidez de estar sentada num degrau da escada da casa da avó, que o batente da porta tinha trincas, as venezianas eram altas e o portão de ferro escurecido. No entanto, às vezes, guarda lembranças tênues, esmaecidas de um episódio que marcou sua vida para sempre?

Daniele Riva – O estoque de memórias não é estático, é dinâmico e seletivo. Memórias extremamente penosas podem ser varridas desse estoque ou lentamente reformadas.

 

Drauzio – Por isso o povo diz que a memória é traiçoeira…

Daniele Riva – Extremamente traiçoeira e, em geral, muito generosa conosco e dura com os outros.

 

Drauzio – Do ponto de vista funcional, como são recuperadas as memórias estocadas em locais diferentes do cérebro? Por que às vezes, andando na rua, pelo menos sem razão aparente, você se lembra do rosto de uma pessoa que conheceu no passado e nunca mais viu?

Daniele Riva – Existem pistas lógicas de acesso ao sistema da memória.  Por exemplo: enquanto falo, cada palavra se concatena ao conteúdo da mensagem de maneira coerente. Consequentemente, a lógica do discurso é uma das pistas de recuperação de informações, mas também podem ocorrer associações múltiplas que vão puxando as memórias do arquivo.

 

Drauzio – Mesmo que aparentemente nada justifique a lembrança de uma pessoa que não vemos faz tempo, algo aconteceu para estabelecer a relação e desencadear o processo…

Daniele Riva – Com certeza, houve uma associação ou uma sequência de associações que passaram despercebidas, mas são responsáveis por desencadear a lembrança.

O grosso da vida fenomenal se passa fora do campo de consciência.  Por volta de 1700, 1800, dominava a psicologia da consciência, a psicologia da introspecção. Aquilo que se passava fora do campo de consciência não era considerado pela Psicologia.

Atualmente, sabemos que a informação é processada por inúmeros canais e de inúmeras maneiras, a imensa maioria fora do campo de consciência e o desafio é saber exatamente que funções ela desempenha.

 

Drauzio – É saber para que existe o estar consciente a respeito de um acontecimento.

Daniele Riva – Exatamente, porque a seleção natural poderia ter-nos programado como robôs, todos exatamente com o mesmo tipo de comportamento. Como a consciência foi selecionada e obviamente se expande na escala biológica, deve ter propiciado uma vantagem adaptativa de extrema relevância.

 

Drauzio – Será que a vantagem não é justamente a de exercer controle sobre o comportamento inconsciente? Puxo automaticamente a mão, antes mesmo de me dar conta de que a encostei numa superfície quente.

Daniele Riva – Mas esse puxar a mão ocorre antes de a informação ser processada como um todo. Não temos, como já mencionamos, a menor ciência de que processamos a informação cromática em separado da informação formal, mas é certo que, nesse procedimento, inúmeros dados são extraídos e depois reunidos para virar um fenômeno consciente.

 

Drauzio – Quando olho uma rosa vermelha, vejo um objeto que para mim tem um significado específico. Como se explica que meu cérebro esteja processando, separadamente, a informação da cor e da forma, quando olho a flor e lembro o rosto da namorada que tive aos 15 anos. Como os circuitos se organizam para chegar a esse resultado final?

Daniele Riva – Embora se fundamente sobre a Neurofisiologia, o nível da consciência opera de modo não neurofisiológico. Não estou falando de nada extramaterial, supramaterial ou não-natural. Digo que as leis que dirigem os fenômenos da consciência não podem ser reduzidas a leis neurofisiológicas. Apenas para dar uma idéia, algo elementar como a percepção de uma rosa vermelha deve envolver meio bilhão de neurônios. No exemplo que você deu, ver a rosa e lembrar-se da namorada não tem resposta no nível fisiológico. Esse episódio só pode ser descrito psicologicamente.

 

Drauzio – É inacreditável que sejam utilizados meio bilhão de neurônios só para perceber que é uma rosa vermelha?

Daniele Riva – A simplicidade do nosso campo fenomenal de consciência, a simplicidade com que percebo, apreendo, lembro, intuo, essa simplicidade é um engano, porque é a síntese de um processo extremamente complexo sobre o qual não temos o menor controle, aliás.

 

Drauzio – Esse trabalho computacional ocorre independente da nossa vontade e talvez a consciência que adquirimos seja só uma ínfima parte do que se passou dentro do cérebro.

Daniele Riva – A psicologia do senso comum imagina que a ação seja desencadeada por algum fato consciente. Movo a mão, porque desejo fazer isso. Até no Direito, as coisas são colocadas dessa maneira sempre. Se o indivíduo tem condições de saber que praticou um ato reprovável, tem de ser punido, tem de ser responsabilizado pela intenção.

Há trabalhos surpreendentes com o propósito de correlacionar a intenção, isto é, aquilo que aparece no campo de consciência, com o que acontece no cérebro, pois existe um tipo de processamento de ondas cerebrais que permite dizer quando o cérebro está pronto para executar uma ação. Os pesquisadores estudaram, então, a vivência introspectiva e descobriram que o cérebro está pronto para executar uma ação 300 milissegundos antes de o primeiro fenômeno ter surgido no campo de consciência.

 

Drauzio – Quer dizer que trezentos milissegundos – um tempo enorme em termos cerebrais –  antes de a pessoa ter consciência da sua ação, seu cérebro já a preparou inteirinha.

Daniele Riva – Trezentos milissegundos antes já estava tudo pronto. É possível até que a intenção faça parte desse pacote que estava sendo preparado pelo cérebro.

 

Drauzio – Esse achado pode passar uma sensação de total impotência. É curioso pensar que antes de eu ter consciência de que resolvi levantar e sair da sala neste momento, meu cérebro já tinha tomado essa decisão.

Daniele Riva – Na verdade, a pessoa já possuía um amontoado de informações de todo o tipo que estava sendo processado fora do campo de consciência.

 

Drauzio – É mais ou menos como se o comportamento aparecesse na tela do computador, depois que os dados tinham sido processados na máquina.

 

Drauzio – Quais são as funções da consciência?

Daniele Riva – Essa é a pergunta que todo mundo se faz atualmente. Se a consciência existe, se é experienciada, se evoluiu na escala biológica, trouxe obviamente vantagens adaptativas e deve ter algum papel causal. Somente ainda não chegamos a um modelo teórico que nos diga que papel é esse. Os enfoques são muitos, é claro. Alguns autores, em desespero de causa, recorreram à mecânica quântica para explicar os fenômenos conscientes.

 

Drauzio – Interessante, porque a consciência é o grande orgulho da espécie humana.

Daniele Riva – Se bem que animais também têm consciência, pelo menos os mamíferos. De algum modo, porém, parece evidente que ela evoluiu na escala animal…

 

Drauzio – Nessa história de dizer – “ah, meu cachorrinho é inteligente, ele percebe as coisas”  – há um pouco de verdade. O que falta é um critério de observação científica…

Daniele Riva – Um critério de observação científica sobre o comportamento animal. Atualmente, trabalha-se muito sobre a hipótese de que o animal tem uma consciência rudimentar e pré-verbal.

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