Pacientes terminais | Entrevista

O final da vida pode ser marcado por padecimento. Quando nada mais se pode fazer, a medicina moderna conta com recursos para tornar mais suave o processo de morte. Veja entrevista sobre pacientes no fim da vida. 

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Publicado em: 19 de outubro de 2011

Revisado em: 10 de agosto de 2021

O final da vida pode ser marcado por padecimento. Quando nada mais se pode fazer, a medicina moderna conta com recursos para tornar mais suave o processo de morte. Veja entrevista sobre pacientes no fim da vida. 

 

* Edição revista e atualizada.

 

A morte é o destino inexorável de todos. Caminhamos em sua direção todos os dias desde o nascimento. Apesar de pouco pensarmos nela, não há quem não almeje um fim de vida tranquilo, sem sofrimento, como o da flor que murcha depois de esgotado seu tempo de plenitude.

É pena que nem sempre seja assim. O final da vida de algumas pessoas pode ser marcado por dores atrozes e muito padecimento. Quando nada mais se pode fazer contra a doença, a medicina moderna conta com recursos para tornar mais suave a progressão dos sintomas e o processo de morte.

Diante dessa possibilidade, é comum vir à tona um assunto polêmico, mas de extrema importância, especialmente depois que Jack Keworkian, médico dos Estados Unidos conhecido como doutor Morte, começou a defender e aplicar a teoria do suicídio assistido em pacientes no fim da vida ou nos portadores de doenças degenerativas e irreversíveis, na segunda metade dos anos 1900.

Como se posicionam os médicos diante dessa nova forma de encarar a morte? Oliver Wendell Holmes, médico e poeta americano que viveu no século 19, foi categórico: “A função do médico é curar, às vezes; aliviar, frequentemente; confortar, sempre”.

 

EUTANÁSIA

 

Drauzio  Qual é sua visão pessoal a respeito do que se convencionou chamar de eutanásia? 

Auro del Giglio – A palavra eutanásia vem do grego: “eu” quer dizer “bom” e “tanatos”, morte. Portanto, segundo a etimologia, eutanásia significa “boa morte”. Não sou a favor da eutanásia, mas também gostaria de ter uma boa morte.

De maneira geral, entende-se por eutanásia um ato deliberado de um indivíduo com vistas a acelerar o processo natural de morte para diminuir o sofrimento de um paciente. No entanto, esse termo admite duas leituras diferentes na literatura médica.

Na eutanásia ativa, o médico interfere de maneira positiva no processo com o objetivo de precipitar a morte do doente para minimizar seu sofrimento. Essa prática é condenada pela imensa maioria dos centros médicos e dos países do mundo.

A eutanásia passiva, que não é considerada crime, na minha forma de ver o problema, é um ato de humanidade, pois sem interferir no processo natural de morte, o médico prescreve medicamentos que tiram a dor e aliviam o sofrimento do doente, mas não acrescenta itens que possam adiar o desfecho desse processo indevidamente.

 

Drauzio – Você enquadraria nessa situação o caso de desligar o tubo de oxigênio que mantém o paciente com vida?

Auro del Giglio – Se a pessoa estiver respirando e depender daquele oxigênio para viver, sim, é um caso de eutanásia ativa. Agora, se o óbito já foi constatado, desconectar o tubo é um procedimento que não tem relação nenhuma com a eutanásia, seja ela ativa ou passiva.

 

Drauzio – Atendi um doente com um tumor na língua, um tumor bem grande que continuava a crescer. Como era uma pessoa absolutamente sem recursos para arcar com as despesas de uma cirurgia de urgência, tentei encontrar um lugar na cidade de São Paulo para encaminhá-lo – veja que não estou falando dos lugares mais ermos e pobres do Brasil, estou falando da cidade mais rica do País – para que a operação fosse custeada pela previdência social. A dificuldade foi enorme. Infelizmente, esse não é um caso isolado. Há muitos doentes que, quando conseguem ser atendidos, têm tumores inoperáveis. Uma sociedade que cruza os braços numa situação como essa e deixa a pessoa morrer, quando teoricamente havia tratamento para sua doença, não está praticando um ato de eutanásia passiva?

Auro del Giglio – Eu convido você a pensar nesse caso de maneira diferente. Convido-o a pensar que essa passividade social é, na verdade, uma forma de eutanásia ativa, tão ativa quanto ver uma pessoa se afogando sem nada fazer para assisti-la e socorrê-la. Não prestar o atendimento necessário ao doente é uma forma deliberada de encurtar-lhe a vida, tudo feito sem o intuito de amenizar-lhe o sofrimento, exatamente o contrário do que propõe a eutanásia ativa tradicional.

 

LEGISLAÇÃO

 

Drauzio – Há leis que regulamentam a realização da eutanásia em alguns países onde essa prática é permitida? 

Auro del Giglio – A Holanda foi o primeiro país a aprovar uma lei que reconhece o direito à eutanásia. Oregon é o único estado americano que fez o mesmo não faz muito tempo, desde que sejam respeitados os seguintes critérios:

a) Se o portador de doença terminal tiver dois médicos que assim o confirmem, no exercício de sua vontade, pode solicitar que lhe prescrevam medicação oral – tem de ser oral – para pôr fim a seu sofrimento;

b) Se, depois de 15 dias da solicitação original, o paciente se mantiver firme nesse propósito, a medicação será prescrita por um médico, mas é o próprio paciente que deve tomar a iniciativa de fazer uso dela.

Por que medicação oral? Porque é o paciente e não o médico que toma a iniciativa de ministrar a medicação. Por que 15 dias de prazo? Para ele ter a oportunidade de arrepender-se da decisão tomada num momento de dor e sofrimento.

 

Drauzio – O que mostrou a aplicação dessa lei na Holanda?

Auro del Giglio – No início, as pessoas que optavam pela eutanásia eram pacientes com doenças  terminais, que estavam sofrendo muito, dignas de compaixão. Paulatinamente, porém, essa postura começou a modificar-se, de tal sorte que portadores de doenças neurológicas, diante da perspectiva de apresentarem as desabilidades características da moléstia, passaram a exercer o direito à eutanásia. Então, aquilo que era reservado para os casos de extremo sofrimento, foi estendido para indivíduos com doenças inexoravelmente progressivas, muitas vezes antes que as deficiências se instalassem. Agora, pense: a morte prematura dessas pessoas pode representar uma forma barata de os seguros de saúde livrarem-se de despesas maiores, no futuro.

 

RISCOS IMINENTES 

 

Drauzio – A morte vem de graça…

Auro del Giglio – De fato. Tais evidências nos permitem admitir o risco de desenvolvermos uma cultura que valorize a atitude de a pessoa desligar-se do mundo antes que a doença o faça, o que pode ter grande impacto mercadológico e econômico. Pode também mudar nossa visão de mundo. Portanto, o perigo de aceitar a prática da eutanásia é muito maior do que pode parecer à primeira vista. Na hora em que um indivíduo desumaniza o outro, enxerga o outro como um subser, são aceitas e justificadas atitudes drásticas, como as que deram origem ao holocausto na Segunda Guerra Mundial, ou a tantas outras guerras étnicas que ocorrem até hoje.

Seguindo esse raciocínio, não é exagero imaginar que os portadores de doenças progressivas e/ou incuráveis venham a ser considerados seres sub-humanos, que representam ônus para a sociedade e, por isso, devem morrer.

 

Drauzio – Como impedir que isso aconteça? 

Auro del Giglio – Só conheço um jeito de evitar esse absurdo: proibir a eutanásia ativa em todos os casos. Esse tipo de eutanásia tem de ser ilegal, porque lesa o direito mais fundamental do ser humano, o direito à vida, uma dádiva que recebemos e devemos respeitar. Ela não nos pertence e não pode estar sujeita a regras meramente racionais ou a tabelas de custos.

 

Drauzio  Estou formado há quase 40 anos, 35 dos quais dedicados à cancerologia. Várias vezes me peguei pensando quantos doentes tive nesse tempo todo que, em determinado momento, diante da evolução da doença, me disseram: “Estou cansado, doutor. Vamos abreviar esse sofrimento. Não quero mais viver assim”. Só consigo me lembrar de três, três doentes, que não apresentaram essa decisão como um pacote fechado, de uma vez. Falavam isso, mas depois hesitavam, ficavam em dúvida. Para você, quantos foram? 

Auro del Giglio – Um doente, aliás uma das pessoas mais maravilhosas que já conheci. Cura, eu não lhe podia prometer, porque transcendia à minha capacidade. Firmei com ele, então, o compromisso de que tudo faria para que não sofresse.

A meu ver, diante dos recursos que a medicina oferece no momento, o doente que pede para morrer está passando ao médico um atestado de sua ineficiência e ignorância no manuseio adequado dos cuidados paliativos. Isso é inaceitável. Precisamos ensinar paliação nas escolas de medicina e para os residentes nos hospitais.

 

PALIAÇÃO

 

Drauzio  Você poderia explicar o que se entende por paliação?

Auro del Giglio – Paliação, se não me engano, deriva de “palium”, uma palavra de origem latina que significa manto, com a conotação de esconder, encobrir. Portanto, paliar é mitigar o sofrimento introduzindo medidas farmacológicas (como o uso de analgésicos e de medicações que atuem sobre a falta de ar, por exemplo, ou neurocirúrgicas, como a colocação de cateteres para promover certos tipos de bloqueios) que ajudam a pessoa a sentir-se confortável, apesar de não interferirem na evolução da doença de base.

 

Drauzio – De fato, os cuidados paliativos são de extrema importância para os doentes terminais.

Auro del Giglio — Os recursos para tratar um paciente com doença terminal têm de ser ensinados sistematicamente nas escolas médicas e nos hospitais que preparam os residentes com a mesma ênfase dada à medicina curativa. Não podemos deixar que saiam na ignorância total das medidas paliativas, porque o compromisso do médico não acaba diante da impossibilidade da cura. Vai além. Ele tem a obrigação de aliviar os sintomas e proporcionar um final de vida melhor e mais digno aos pacientes. Só assim, poderemos evitar que peçam para morrer. Quando isso acontece, é sinal de que não estão recebendo adequadamente os cuidados paliativos, que já constituem um ramo da medicina pronto para atuar junto com a neurologia e a oncologia, por exemplo.

 

POSTURA DO MÉDICO 

 

Drauzio – Retomando o caso do dr. Morte, porque o considero emblemático, as fotografias dele e as entrevistas a que tive oportunidade de assistir me passaram a imagem de um sujeito sisudo, um pouco estranho até. Embora possa estar enganado, ele não me pareceu uma pessoa em paz com a vida nem que achasse que vale a pena viver. Fico imaginando que, se um dia tiver uma doença grave, sem dúvida vou procurar um médico que sinta prazer em viver, porque isso contagia a gente. Se você anda aborrecido, mas encontra um amigo todo animado, parece que tudo melhora. Você não acha que o médico demonstrar sua vontade de viver  ajuda o paciente?  

Auro del Giglio – Não é raro o médico entrar no quarto de um paciente um dia antes de ele morrer e vê-lo rir muito quando lhe contam uma piada. Não é crime curtir os últimos momentos de vida de maneira agradável.

 

Drauzio – Ou ele mesmo conta a piada…

Auro del Giglio – É verdade. Eu me lembro de um paciente que queria muito assistir à transmissão de um jogo de futebol decisivo para a conquista de um título. Acho que essa vontade o manteve vivo por mais um dia para poder curtir aquele momento.

 

Drauzio – Na verdade, não são só os doentes que se beneficiam com os cuidados paliativos. Os familiares também se beneficiam.

Auro del Giglio – Estou convencido de que tanto a família quanto o médico podem tirar alguma coisa de bom desse período que é supostamente ruim, se os recursos da medicina forem utilizados de maneira a minimizar o sofrimento, enquanto Deus quiser que a pessoa viva, o que é possível fazer sem interferir no processo natural de morte. Sou absolutamente contra a eutanásia ativa. Acho que o médico externar seu amor à vida é tão importante para contagiar os pacientes, quanto sua postura contrária à qualquer medida que acelere o processo de morte artificialmente.

 

ANALGESIA PESADA 

 

Drauzio – Você recebe um doente que está sentindo dores terríveis. Todos os recursos terapêuticos foram esgotados e você prescreve analgésicos (o mais eficaz é a morfina, pouco usada no Brasil, não me canso de repetir). As dores não cedem. Doses mais altas de analgésicos ou de outras drogas para aliviar a dor deixam o doente um pouco debilitado, mais sonolento, sem apetite. Sem receber os remédios, seu sofrimento seria insuportável, mas talvez vivesse mais um pouco, um ou dois dias, quem sabe. Na sua opinião, essa conduta médica representa uma forma de eutanásia?   

Auro del Giglio – Não representa. Quando você estuda a posição do judaísmo acerca do assunto, é consensual entre os rabinos mais modernos que isso não é eutanásia. Ou seja, diminuir o sofrimento utilizando medicações opioides, judiciosamente prescritas, sem o intuito de provocar depressão respiratória, não é considerada eutanásia ativa. A mesma posição é defendida pela Igreja Católica, e os protestantes já emitiram opinião idêntica sobre o assunto. Esses dados são de domínio público e facilmente acessados na internet.

 

Veja também: Leia entrevista sobre manejo da dor

 

Isso significa que prescrever medicações que teoricamente podem gerar depressão respiratória como efeito colateral, se utilizadas com cuidado e critério para tirar a dor, mesmo que por hipótese possam abreviar a vida do doente, não constitui um ato de eutanásia ativa, porque está destituído da intenção de acelerar o processo de morte.

 

Drauzio – Essa é exatamente a posição defendida pela Organização Mundial de Saúde: utilizar medicações mais pesadas, porque são absolutamente necessárias para evitar o sofrimento, sem a intenção de encurtar a vida do doente, mesmo que isso aconteça, não constitui eutanásia.

Auro del Giglio – O mais curioso é que, embora a morfina seja o melhor dos analgésicos, no Brasil, prescrevê-la é uma dificuldade, a começar pela exigência de um receituário especial. Além disso, os derivados de morfina disponíveis no mercado são vendidos a preço muito alto, o que inviabiliza sua utilização por pacientes com parcos recursos financeiros, como os que recebem aposentadoria.

Nosso desafio, como médicos no Brasil, é lutar para que essas medicações tenham preços acessíveis e ensinar como usá-las de maneira efetiva. É isso que estamos tentando fazer modestamente no nosso meio. Nós compramos morfina para os pacientes que não têm condições de fazê-lo, pois uma das coisas mais tristes é ver alguém com dor e sem dinheiro para comprar remédio.

 

Drauzio – A dor tem impacto muito grande na vida do homem. A pessoa está bem, desempenhando suas funções normalmente. De repente, tem uma crise de cólica renal. Sente uma dor violenta que a faz rolar no chão. Alguns minutos mais tarde, desiste de viver, mas basta tomar uma injeção, a dor passa e ela retorna o amor pela vida. O limiar da dor varia de uma pessoa para outra. Há gente que se desespera diante de uma dorzinha de cabeça de fraca intensidade. Com outras, isso só acontece quando a dor fica é lancinante.  

Auro del Giglio – É verdade. A dor é uma experiência que vai contra a dignidade humana. Um estudo realizado na Faculdade do ABC com doentes que, depois de receber remédios contra a dor, eram convidados a responder um questionário bastante objetivo, mostrou que a qualidade de vida dessas pessoas melhorava sensivelmente depois de ministrada a medicação.

Na prática clínica, isso está evidente. Por isso, nossa tarefa é proporcionar aos portadores de quadros dolorosos os cuidados paliativos pertinentes, para que nem sequer pensem em eutanásia.
Aventar essa possibilidade espelha uma falha dos profissionais para viabilizar a assistência médica com os cuidados paliativos adequados para cada paciente.

Jamais deveríamos pensar em eutanásia. Deveríamos saber como tratar a depressão, a dor, a falta de ar dos pacientes terminais para que não quisessem morrer mais cedo porque a vida deles está muito ruim.

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