Diálise e hemodiálise | Entrevista

Quando há insuficiência renal, o processo de filtração do sangue fica tão comprometido que é preciso substituí-lo artificialmente pela diálise. Saiba mais.

Elias David Neto é médico nefrologista, responsável pelo setor de transplante de rins no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e membro do corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo (SP). postou em Entrevistas

Mulher sentada fazendo diálise com outro paciente desfocado ao fundo.

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Publicado em: 15 de outubro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Quando há insuficiência renal, o processo de filtração do sangue fica tão comprometido que é preciso substituí-lo artificialmente pela diálise.

 

O funcionamento do nosso organismo depende muito da capacidade que os rins têm de filtrar o sangue, excretando as substâncias que devem ser desprezadas e retendo aquelas que fazem parte do sistema metabólico.

Vamos entender como isso acontece. (imagem 1) O sangue chega aos rins pela artéria aorta que lança dois ramos, um para cada rim (as artérias renais), e circula por inúmeros pequenos filtros, os nefrônios. Esses filtros não funcionam apenas de forma passiva como os filtros domésticos que retêm as partículas em suspensão na água. Eles também participam ativamente na absorção e excreção de substâncias tóxicas resultantes da atividade das células e que não podem permanecer no organismo. Depois de filtrado, o sangue volta para o coração pelas veias renais e a urina desce para a bexiga por dois condutos, os ureteres.

Quando, por alguma razão, essa estrutura é alterada, os rins passam a funcionar de forma precária e aparece a insuficiência renal que pode ser passageira ou crônica. Nesse último caso, o processo de filtração fica tão comprometido que precisa ser substituído artificialmente pela diálise.

 

PROPÓSITO DA DIÁLISE

 

Drauzio – O que se pretende quando se indica a diálise para um paciente?

Elias David Neto – Em geral, a diálise é indicada quando a função renal está bastante reduzida, ou seja, em torno de 10% da função inicial, o que é insuficiente para manter a pessoa viva. Com 50%, 60% ou 70% da função preservada, ela conseguirá levar vida absolutamente normal.

A diálise é uma forma de substituir a função que os rins deixaram de realizar à medida que as doenças foram provocando queda em sua capacidade de filtração. Consiste em passar o sangue através de um novo filtro que está em contato com um líquido que contém as substâncias que precisam permanecer e não contém as substâncias indesejadas.

Em outras palavras: por um processo simples de difusão, passam para esse líquido as substâncias não contidas nele e ficam retidas no sangue as que o líquido contém. Depois, o sangue depurado dos elementos nocivos é devolvido para o organismo do paciente.

Na verdade, trata-se de um processo de circulação extracorpórea. Geralmente, a diálise é feita de três a quatro vezes por semana para que seja possível filtrar uma quantidade suficiente de sangue que permita manter a pessoa bem metabolicamente.

 

PERDA DA FUNÇÃO RENAL

 

Drauzio – Os rins são órgãos altamente eficientes na filtração do sangue. Você disse que as diálises só são indicadas quando eles atingem menos de 10% de sua capacidade funcional e que a perda é lenta e gradativa. Isso não provoca nenhum sintoma?

Elias David Neto – É importante dizer que as doenças renais acometem sempre os dois rins e que a perda de sua função é realmente lenta e progressiva. Lembrar que temos um milhão de unidades funcionais em cada um desses órgãos e que elas são independentes ajuda a compreender o processo. É como se numa fábrica existissem um milhão de máquinas, cada uma capaz de produzir, por exemplo, uma camisa inteirinha por dia. Portanto, um milhão de máquinas funcionando produziriam um milhão de camisas diariamente. Vamos imaginar que algumas dessas máquinas tenham deixado de funcionar. Novecentas máquinas produzirão novecentas camisas, porque uma não compromete o desempenho da outra. Assim é no organismo. Com um número reduzido de unidades renais, é possível manter o equilíbrio metabólico e o indivíduo não percebe que está perdendo a função renal a não ser quando ela cai para mais ou menos 30% e aparecem sintomas como pressão alta e necessidade de urinar durante a noite, porque os rins perderam a capacidade de armazenar a urina. Com a bexiga cheia, a pessoa passa a acordar frequentemente para ir ao banheiro.

 

Drauzio – Em média, quantas vezes por noite?

Elias David Neto – Em geral, uma ou duas vezes por noite, mas todas as noites impreterivelmente. Vale lembrar que, à noite, liberamos um hormônio que faz a urina ficar bem concentrada (por isso, os laboratórios pedem a primeira urina da manhã para exame) a fim de poupar água, porque ficaremos várias horas sem bebê-la, e para evitar que o sono seja interrompido pela bexiga cheia.

Essa capacidade de concentrar a urina é uma das primeiras funções que o rim perde. O indivíduo começa a excretar urina mais diluída e acorda com mais frequência do que normalmente fazia. Depois, aparece o inchaço e os exames revelam, entre outras alterações, um pouco de anemia. Isso só acontece nos 30% de função remanescente. Antes, o quadro é absolutamente assintomático.

 

Veja também: Veja um vídeo sobre diálise

 

DOENÇAS RENAIS

 

Drauzio – Há problemas mecânicos, como um cálculo, um ferimento ou um tumor, que podem acometer apenas um dos rins, mas as doenças renais acometem sempre os dois. Quais são as mais importantes?

Elias David Neto – As mais comuns são as glomerulonefrites. Entretanto, os rins podem ser acometidos também por doenças sistêmicas como o diabetes mellitus, por exemplo. Em regra, as glomerulonefrites são doenças autoimunes, como algumas artrites e a tireoidite. Quer dizer, a pessoa não fez nada de errado para contrair a doença: não bebeu, não fumou, não engordou demais. Simplesmente, seu sistema de defesa passou a agredir os rins como se fossem um corpo estranho. Essa agressão contínua faz com que as pequenas unidades renais, uma a uma, deixem de funcionar progressivamente até o momento em que não são mais capazes de manter a vida.

 

TRATAMENTO CONSERVADOR

 

Drauzio  Diante de um quadro grave de insuficiência renal, quando já apareceram sintomas como inchaço, dificuldade de concentrar a urina, pressão arterial elevada, em que vocês se baseiam para indicar um sistema paralelo de filtração do sangue como a diálise?

Elias David Neto – É difícil determinar essa fronteira. Quando se detecta que o indivíduo está perdendo a função renal, mas ainda possui 50% ou 60%, a indicação é começar pelo tratamento conservador da insuficiência renal e não pela diálise. São medidas clínicas, como dietas e remédios, com o intuito de preservar por mais tempo a função que ainda existe. Além disso, são prescritas as substâncias necessárias para ativar a produção de sangue, evitar a anemia e para facilitar o metabolismo do cálcio. A preocupação é fazer com que os rins trabalhem o menos possível. Quanto à dieta, é preciso suspender a ingestão de proteínas e restringir o consumo de sal visando ao controle da pressão arterial.

Infelizmente, apesar de todas essas medidas, a função renal continua se deteriorando. Com elas, simplesmente conseguimos prolongar o tempo sem diálise, pois chega o momento em que os exames laboratoriais ou o estado do paciente revelam que o tratamento conservador não está sendo mais suficiente para manter seu equilíbrio metabólico estável. Por exemplo, a restrição de proteínas é tão severa para que a ureia não suba, que ele começa a ficar desnutrido.

A diálise não é um castigo. Ao contrário, é um tratamento muito eficiente. Às vezes, a pessoa reage – “Dr. Elias, ainda não estou sentindo nada e o senhor já quer que eu faça diálise?”. Um mês depois de iniciado o tratamento, ela se sente tão melhor que se arrepende de não ter começado bem antes.

Insisto que a diálise não é um castigo. É um tratamento eficiente que as pessoas fazem espontaneamente. Hoje, temos perto de 400 pacientes fazendo diálise. Ninguém vai buscá-los em casa. Vão sozinhos ao centro de diálise, porque sabem que depois daquela sessão vão sentir-se muito bem. Aqueles que aprenderam a enxergar na diálise uma parceira e não uma inimiga, tomam partido disso. Muitos me ligam dizendo: “Olhe, tenho um casamento hoje. Posso fazer uma sessão de diálise para me sentir melhor e aproveitar bem a festa?”

 

HEMODIÁLISE

 

Drauzio – Você poderia explicar como é feita a diálise?

Elias David Neto – Existem dois tipos de diálise: a diálise peritoneal e a hemodiálise. O mais comum é a hemodiálise, que exige uma preparação anterior no braço para tornar o vaso mais resistente à passagem do sangue, que é retirado pela artéria, passa pelo filtro da máquina de diálise e é devolvido pela veia. O volume que fica fora do corpo a cada momento é bem pequeno, 150 ml (temos aproximadamente 5 litros), só que a velocidade é muito grande, o que permite filtrar grandes quantidades. Num processo contínuo, o sangue passa pelo filtro que retira as toxinas e volta depurado para diluir-se nos 5 litros que permaneceram no organismo.

 

Drauzio – Quantas horas dura uma sessão de hemodiálise?

Elias David Neto – Em geral, de três a quatro horas. Enquanto o sangue é filtrado, retira-se também o excesso de água e sal que o paciente reteve. Quando os rins não funcionam, os líquidos e o sal ingeridos não são eliminados. É bom lembrar que não existe sal sem água nem água sem sal no organismo. Quer dizer, se o indivíduo ingerir 9 gramas de sal numa refeição, automaticamente será obrigado a tomar um litro de água. Por isso, entre uma sessão e outra de hemodiálise, o paciente com insuficiência renal crônica ganha 2 quilos, 3 quilos de peso, na verdade, 2 ou três quilos de água e sal que ficaram retidos.

 

Drauzio – A máquina de hemodiálise funciona como um rim artificial para esses pacientes.

Elias David Neto – Funciona como um rim artificial planejado apenas para filtrar o sangue, porque os rins têm também a capacidade de produzir hormônios e vitamina D, controlar a pressão arterial e mandar a medula óssea fabricar sangue. Por isso, quase 100% dos pacientes com insuficiência renal têm anemia não por falha da fábrica de sangue, mas por falha na ordem para fabricá-lo. No entanto, essas deficiências podem ser corrigidas com medicamentos sob a forma de comprimidos ou injeções, para que o indivíduo tenha a melhor qualidade de vida possível.

 

Drauzio – Quantas sessões por semana o paciente deve fazer? 

Elias David Neto – Normalmente são feitas três sessões por semana no mínimo. Atualmente, já existem centros no mundo que fazem hemodiálises noturnas todos os dias, enquanto o paciente dorme no próprio centro ou em sua casa.

 

Drauzio – Esse número de sessões semanais não restringe muito a vida pessoal? Fico imaginando como faz a pessoa obrigada a passar quatro horas pelo menos três vezes por semana num centro de diálise se quiser viajar, por exemplo.

Elias David Neto – Há dois aspectos que não podem ser esquecidos. Nós não prescrevemos diálise por gosto. Prescrevemos, porque a alternativa que resta é não viver.

A pessoa faz diálise enquanto espera por um transplante de rins. Nesse período, tem que abrir mão de algumas coisas. Entretanto, é possível conciliar uma série de atividades com o tratamento, fazendo as sessões bem cedo ou muito tarde.

Em relação às viagens, hoje existem centros de hemodiálise em qualquer lugar. Existem em navios e em hotéis. Há até um guia de turismo com diálise, indicando os lugares do mundo em que o serviço está à disposição. No Brasil, há uma rede assistida pela Previdência Social a serviço dos pacientes.

 

Drauzio – A pessoa quer visitar um parente que mora distante. Ela consegue fazer diálise no lugar onde ele vive? 

Elias David Neto – Isso se chama diálise em trânsito. O centro da cidade de origem avisa com antecedência o centro da cidade a que a pessoa se dirige e, havendo vaga disponível, ela pode visitar os parentes, porque estará garantida a continuidade do tratamento por conta da Previdência Social.

 

DIÁLISE PERITONIAL

Drauzio – Como é feita a diálise peritoneal?

Elias David Neto – Em vez de usar a circulação extracorpórea, a diálise peritoneal usa a circulação do peritônio, uma membrana que reveste a parede abdominal e as alças intestinais para filtrar o sangue. Por um cateter introduzido no abdômen do paciente, passa uma solução aquosa que, em contato com os pequenos vasos sanguíneos existentes no peritônio, retira as substâncias prejudiciais.
Esse sistema é um pouco menos eficiente do que o sistema externo. Por isso, requer mais horas para completar o processo, que é indolor e pode ser realizado pelo próprio paciente.

 

Drauzio – Como isso é possível?

Elias David Neto – Vamos supor que o paciente queira fazer a diálise enquanto dorme. À noite, ele destampa o cateter respeitando um procedimento pré-estabelecido para evitar contaminação e conecta-se na máquina que infunde e drena o líquido repetidas vezes. Pela manhã, a diálise terá terminado. Ele fecha o cateter que é imperceptível e não o atrapalhaem nada. Com algum treinamento, consegue fazer tudo sozinho, sem a colaboração de mais ninguém. Entretanto, alguns não se adaptam à rotina do procedimento. Os que se adaptam têm boa condição de vida.

 

ADESÃO AO TRATAMENTO

Drauzio – Quanto tempo uma pessoa pode manter-se fazendo diálise?

Elias David Neto – Teoricamente, pode fazer diálise por tempo indeterminado. Hoje, é possível escolher entre fazer diálise por toda a vida ou fazer um transplante de rim. É claro que se a opção for manter-se em diálise, ela precisa estar comprometida com o processo por anos e anos e não apenas por pelo período em que aguarda o transplante.

 

Drauzio – Que orientação você daria para quem vai começar a fazer diálise? 

Elias David Neto – Eu diria para esquecer tudo de mal que a pessoa ouviu falar sobre a diálise em si e os centros de diálise. No Brasil, a legislação obrigou os centros de diálise a adaptar-se a determinadas exigências. Você entra num centro qualquer mantido pela Previdência Social e se assusta com a sofisticação. A água fornecida pelas empresas é tratada e de qualidade excelente, os equipamentos são modernos.

Diria, portanto, que a pessoa não deve ter medo e que deve procurar adaptar-se ao tratamento, pois ele lhe permitirá levar vida quase normal, quase igual a que terá depois do transplante.

 

Drauzio – O que ajuda a pessoa a adaptar-se a essa nova vida?

Elias Davis Neto – Comparo a diálise com os óculos. Quem usa óculos, de vez em quando, vai ao médico para acertar o grau das lentes, mas todos os dias precisa tomar certos cuidados. Embora eles possam incomodar ou mesmo machucar um pouquinho, o conforto que oferecem é tão grande que a pessoa se esquece de tirá-los quando vai dormir ou tomar banho. Em vez de inimigos, eles são parceiros.

A diálise deve ser encarada do mesmo modo. O paciente deve conversar com seu médico para descobrir como pode tornar a diálise que vai fazer mais eficiente e menos perceptível. Conheço pessoas que, na empresa onde trabalham, ninguém sabe que fazem diálise. Quando passam por um transplante, a surpresa é geral. “Como, você foi transplantado?” e a resposta é: “Fiz diálise dois anos enquanto esperava por um rim compatível”.

 

Drauzio – Fico impressionado como as pessoas conseguem parar quatro horas, três vezes por semana, para fazer diálise.

Elias Davis Neto – No nosso centro de diálise, temos um sistema de TV que ajuda a distrair o paciente. Em geral, as pessoas ouvem música, leem, executam uma tarefa ou dormem. Tudo depende de como o indivíduo se adaptou ao sistema e ao horário que escolheu. Se faz a diálise à noite ou bem cedinho de manhã, talvez prefira dormir um pouco. De alguma forma, cada um procura tirar melhor partido das horas que ficaem tratamento. Hoje, com o telefone celular as pessoas podem fazer ligações, enquanto estão na máquina de diálise e com os computadores portáteis podem escrever e trabalhar.

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